Um momento de eterno devir

Vista da Mostra "Pierre Huyghe" apresentada no LACMA em 2004. Foto: Ola Rindal
Vista da mostra “Pierre Huyghe”, apresentada no LACMA em 2004. Foto: Ola Rindal

Um cão chamado Humano, com uma perna pintada de cor de rosa, perambulando livremente em uma antiga área de compostagem de um parque em Kassel ou em um museu de arte contemporânea em Los Angeles. Um caranguejo eremita gigante que fez sua casa em uma cópia de uma escultura de Constantin Brancusi. Uma colônia viva de abelhas cobrindo a cabeça de uma escultura, um nu feminino, em concreto. Uma floresta, com mil árvores dentro de uma ópera. Um filme que tem como personagem um macaco, antigo garçom de um restaurante japonês, usando vestido e máscara branca. Uma performance de três horas de duração que incluiu um imitador de Michael Jackson e um casal fazendo sexo. Um performer com rosto coberto por uma máscara de LED. Estas são algumas das enigmáticas obras do artista francês Pierre Huyghe, que é um dos destaques da Bienal de São Paulo deste ano. 

Com uma obra que inclui diversas mídias – de vídeo à performance – e disciplinas – da biologia à filosofia –, mais do que produzir obras acabadas, Huyghe cria situações e ecologias que abrem espaço para a emergência de eventos. Mesmo que algumas de suas peças lidem com história natural e biologia, a ecologia, no trabalho de Huyghe, não equivale ao “ambientalismo”, mas se refere a um conceito que descreve a interdependência e interação entre diferentes organismos. As entidades que habitam as obras de Huyghe incluem seres animados e inanimados, com a humanidade posicionada como uma, mas não necessariamente como a principal, parte desses sistemas. É assim que insetos, plantas, animais, seres humanos, são “expostos” ao lado de rochas, esculturas, objetos e artefatos, ruindo de uma só vez as distinções entre arte e vida, ficção e realidade, natureza e cultura.

O artista afirmou certa vez que não queria mais expor algo a alguém. Queria fazer o inverso e exibir alguém para alguma coisa. O que parece estar em jogo nessa proposição aparentemente desconcertante é a própria definição do dualismo sujeito–objeto. Qual é o objeto e quem é o sujeito de uma determinada situação? O interesse de Huyghe não reside, entretanto, na questão relacionada com o status do objeto de arte e sua dependência da teoria para adquirir significado e status como arte. Na verdade, Huyghe descreve o objeto de arte como uma coisa histérica, que precisa ser vista, endereçada pelo olhar de um observador a fim de existir. Para além do seu status “como arte”, “o objeto da exposição em si, é no objeto que eu estou interessado”, diz ele. Concentrando–se na realidade material das coisas, que existem independentemente do olhar, ele desafia ao mesmo tempo a primazia do objeto de arte e o papel do sujeito como significante, enfatizando, em vez disso, as relações entre os dois.

Frame do filme "De-Extiction"
Frame do filme “De-Extiction”

Mesmo sendo reconhecido como um dos principais representantes do conceito de estética relacional, cunhado por Nicolas Bourriaud, Huyghe nunca se prendeu ao aspecto dominante da mesma: a “participação social”. Em outras palavras, suas obras não colocam ênfase na participação do espectador através de, por exemplo, encontros entre pessoas que se envolvem em algum tipo de sociabilidade a partir de uma obra de arte, geralmente instalações performativas/participativas, como nas obras de Rirkrit Tiravanija. Diferentemente das obras de outros “artistas relacionais”, os ecossistemas de Huyghe não requerem a copresença do público para serem “ativados” e adquirir significado. Eles são, inclusive, indiferentes à presença do público. Como se afirma no material educativo da Bienal de São Paulo, o lugar  do público na obra do francês é o de “(não) testemunha da transformação”. Isso ocorre até porque muitas das suas proposições artísticas se desenvolvem ininterruptamente, fora dos espaços tradicionais da arte e para além de seus horários de funcionamento, independentemente de alguém estar lá para ver ou não. O espectador, quando presente, se torna parte da ecologia da obra e pode ou não testemunhar algo acontecendo; pode ou não ter um impacto sobre o desenvolvimento das coisas.

Para além da questão da presença, é essa incerteza, esse “talvez” que é o conceito fundamental para o artista. Suas situações construídas sempre permitem uma certa imprevisibilidade. Se os projetos envolvem um nível de intencionalidade e controle, uma vez que iniciados, as entidades que dele fazem parte estão livres para se desenvolver, evoluir e produzir desdobramentos inesperados até mesmo pelo próprio artista. Não há coreografia a ser seguida. Os elementos em um determinado ecossistema podem interagir ou mesmo se retirar, estão livres para se comportar como desejam. Nas instalações em que Humano, o cão,  participou, por exemplo, ele estava livre para vaguear no espaço expositivo, para ir e vir à vontade, não sendo obrigado a estar presente ou praticar qualquer atividade específica em nenhum momento. O resultado é que a instalação nunca era exatamente a mesma, estava sempre mudando, evoluindo de maneiras imprevisíveis. Esta proposição foi levada ainda mais longe em 2014, durante sua retrospectiva no LACMA (Los Angeles County Museum of Art), quando Huyghe teve a oportunidade de reunir grande número de obras que nunca haviam sido exibidas conjuntamente. Sem uma ordem cronológica ou narrativa, o artista permitiu que diferentes obras interagissem e “contaminassem” umas às outras. Assim é que o cão chamado Humano poderia, por vezes, ser encontrado em pé ao lado de outro trabalho, ou que o performer vestindo uma máscara LED, parte da obra Player, podia por vezes ser visto no mesmo espaço que o caranguejo eremita que vive na réplica da escultura de Brancusi, parte da obra Zoodram 5. Essas ocorrências e interações produziam constantemente diferentes imagens e significados, para muito além do controle do artista.

Para a Bienal de São Paulo, ele trouxe uma nova versão do filme De–extinction – que em biologia significa ressurreição ou revivalismo, um processo que traz espécies extintas de volta à vida. Produzida em 2014, a peça apresenta fotos macro e microscópicas de uma pedra de âmbar que contém um par de insetos fossilizados. Os animais foram pegos em meio à cópula, 30 milhões de anos atrás. Na Bienal, o vídeo é apresentado em grande escala pela primeira vez, projetado em um quarto de 80m2, em que o público pode entrar, provocando no espectador a sensação de estar dentro daquele momento. Juntamente com o vídeo, uma sala menor – esta criada especialmente para a exposição  e que também está aberta ao público – apresenta insetos reais, descendentes daqueles congelados no âmbar, mas criados em um laboratório. A obra dialoga diretamente com um dos temas centrais da Bienal: o antropoceno, as radicais mudanças climáticas e ambientais que ameaçam a existência futura da humanidade. Ruindo temporalidades e intersectando passado, presente e futuro, o filme retrata a morte de duas criaturas no exato momento em que elas estavam prestes a produzir vida. Por outro lado, a presença de seus descendentes parece sugerir que nada é realmente definitivo, nem mesmo a extinção, e que a vida é sempre recorrente, retornando de uma forma ou de outra.


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