Um planeta chamado Aguilar

Performance no Hara Museum of Contemporary Art, 1985.
Performance no Hara Museum of Contemporary Art, 1985/ Foto Patricia Ferrari

José Roberto Aguilar é do mundo. Esse ser essencialmente performático, explorador da arte em suas várias formas, seja ela pintura, escultura, videoarte, música, literatura, teatro e as provocativas (e inesquecíveis, para quem teve a oportunidade de presenciá-las) performances, vem deixando sua marca por onde passa. Isso em São Paulo, onde nasceu, em 1941, no Rio de Janeiro, em Buenos Aires, Paris, Londres, Nova York, Japão (país que o inspirou na videoarte, da qual foi pioneiro no Brasil) ou em outras partes do planeta, tomando como pares artistas com o mesmo espírito provocativo, como o cantor e compositor brasileiro Jorge Mautner (que conheceu ainda no ginásio e fundou o grupo Kaos, multiartístico), Gilberto Gil, Caetano Veloso, o artista plástico Ivald Granato, e os videoartistas Nam June Paik e Dennis Oppenheim.

Desde que despontou na cena artística brasileira, no início dos anos 1960, esse estudante de Economia extremamente apaixonado pela literatura – sempre pensou que seria escritor – nunca mais passou despercebido, transitando entre um suporte e outro com absoluta espontaneidade explosiva. Inclusive nos livros, que por fim escreveu. “Todas as linguagens convergem numa só vertente, e essa vertente é a criação”, pontua o artista em documentário feito por Luiz Claudio Lins para a série Encontros, do Itaú Cultural.

A trajetória do inquieto Aguilar acaba de ser esmiuçada em livro, lançado em dois portentosos volumes (bilíngues português/inglês), que abarcam os anos de 1960 a 1989 e de 1990 a 2010, com texto de Solange Lisboa e farto conteúdo sobre tudo o que produziu Aguilar nesse período, em vários tipos de suportes. “Quando eu falo do passado, o passado está presente, dos anos 1960 até agora… Presente como ebulição para novas criatividades. Até agora não cheguei a lugar nenhum. Ao contrário, estou meio perdido e, quanto mais você se perde, mais vira a mesa”, define Aguilar no mesmo documentário. “Não existe nem passado, nem presente. Só existe o insight”, escreve em seu Manifesto da Casa das Rosas, instituição que dirigiu entre 1995 e 2003.

As vulcânicas “viradas de mesa”, em várias partes do planeta, estão descritas no livro recém-lançado. Como a do Circo Antropofágico-Ambulante-Cósmico e Latino-americano Apresenta esta Noite: A Transformação Permanente do Tabu em Totem, exibido na 14ª Bienal de Artes de São Paulo, em 1977, e no Teatro Ruth Escobar, na capital paulista. Nessa obra, Aguilar mistura videoarte com performance, “dando existência a uma nova categoria expressiva: a videoinstalação performática”, descreve Solange Lisboa.

O Circo, porém – uma ópera conceitual que contrapõe colonizadores e colonizados por meio de dança, música, performance, circo e vídeo –, ao mesmo tempo que empolga o físico, crítico de arte Mário Schenberg, na ocasião na Folha de S. Paulo, e entusiasta do trabalho de Aguilar, provoca polêmica entre outros críticos, prontamente rebatida pelo artista da maneira como ele melhor sabia, e sabe fazer: com outra performance. Dentro da redação do Jornal da Tarde, onde Sábato Magaldi havia vociferado contra O Circo, Aguilar leva a sua trupe e, subindo em uma mesa da redação, lê seu manifesto: “O Circo Antropofágico-Ambulante-Cósmico e Latino-americano deseja entrar nas cidades, nas capitais, mas é sempre marginalizado. Após (e durante) a Grande Depressão, descobre que o motivo do desprezo é a cultura dominante, um vampiro mandado pela metrópole”.

Sem se enquadrar em nenhum movimento artístico preestabelecido, Aguilar nunca se desgarrou, porém, do seu comprometimento consigo mesmo, mantendo, desde os anos 1960, uma linha de ação na qual faz o que realmente gosta e tem prazer e necessidade de expressar, sem se render aos ditames do mercado. “A minha arte não é pop, é cor, realismo fantástico, realismo mágico, um figurativismo abstrato… Não importam esses rótulos.” Diz-se até que, venerado pelos críticos e pelas galerias, utiliza suas efusivas e valorizadas pinturas para financiar as outras vertentes artísticas pelas quais se aventura, das quais as mais explosivas são, efetivamente, as performances. Mesmo nas pinturas, expressa o que lhe inspira a alma, como o futebol – por qual é apaixonado e são-paulino roxo –, tema de várias de suas telas.

Autorretrato com máscara, 1968.
Autorretrato com máscara, 1968.

Aguilar e performance são palavras quase sinônimas. Elas ganham força na vida do artista nos anos 1970, sendo profusas em críticas sociais e ao establishment cultural. Em Mitos Vadios, por exemplo, um grande happening coletivo organizado por Ivald Granato, Aguilar e artistas do calibre de Hélio Oiticica e Claudio Tozzi, entre outros, faz-se uma severa, porém bem-humorada, crítica à I Bienal Latino-Americana, no fim de 1978, e cujo tema era Mitos e Magia. “O samurai do I Encontro Internacional de Videoarte desembainha agora sua espada contra omissão cultural, bom gosto, pacote cultural, crítica colonizada e esnobismo – os ‘demônios’”, descreve Solange Lisboa no livro sobre o artista. Na ocasião, Aguilar, o “samurai”, duelou com o próprio curador da mostra, Carlos von Schmidt, que, para espanto de seus pares, topou comparecer ao estacionamento da Rua Augusta, 2.918, onde seria realizado o happening. Aguilar, com uma espada de verdade, e Von Schmidt, com uma espada imaginária, duelaram por alguns minutos, com Aguilar gritando “Banzai, banzai!”, e ouvindo em troca algumas outras palavras em japonês.

O que enraizou na década de 1970 fortificou-se, e o resultado foi uma profusão de performances que culminaram com o arrebatamento de multidões ansiosas para acompanhar o artista. Na Pinacoteca do Estado de São Paulo, por exemplo, em Concerto para Piano de Cauda, de 1980, Aguilar toca piano com luvas de boxe, extintores de incêndio e cítara – ocasião que significou o embrião da Banda Performática, criada em 1981, outra das vertentes de expressão artística e que agitou as noites paulistanas na época, em templos underground, como o Radar Tan-tan e Lira Paulistana. O maior sucesso da banda, Você Escolheu Errado o seu Super-herói, ganhou o País na interpretação das Frenéticas. Em outra performance emblemática, Anti-Christo (em alusão ao artista búlgaro, que embrulhou monumentos, pontes e praias), Aguilar, literalmente, desembrulhou o Museu da Imagem e do Som – MIS, na capital paulista, coberto por centenas de metros de plástico preto, durante a abertura do IV Festival Vídeo-Brasil, em 1986.

Já em 1989, arrasta mais de 15 mil pessoas e 300 artistas – entre eles, Ivald Granato, o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa, o cantor e compositor Arnaldo Antunes, Jorge Mautner e o ator Sérgio Mamberti – ao Estádio do Pacaembu para participarem da megaperformance A Revolução Francesa, com Aguilar no papel de Voltaire. Um dia antes, no ensaio geral, atores e participantes marcharam na Praça Charles Miller, onde fica o Pacaembu, convidando a população para participar do evento, ao que foram prontamente atendidos. “Eu me manifesto através de uma celebração. Todas as minhas atividades são uma celebração. Uma coisa que celebra, basicamente. Sempre é em relação a um tesão pela vida”, define a forma de agir José Roberto Aguilar. Vida longa, profícua e plena de celebrações ao artista!


O LÍDER DA MATILHA

Respostas mágicas, múltiplas, opostas, nonsense, transitam pelo trabalho de Aguilar, um artista diferente
Por Leonor Amarante

Banda Performática, formada por Aguilar, Zé Português (baixo) e Edu Rocha (bateria), 1986
Banda Performática, formada por Aguilar, Zé Português (baixo) e Edu Rocha (bateria), 1986

Acompanhar Aguilar em seus momentos mais “siderados” foi como viajar no rabo de um foguete. Suas performances em Tóquio, Paris, Buenos Aires, Rio de Janeiro ou São Paulo incendiavam a plateia e ninguém assistia a nenhuma delas sem se envolver literalmente.

Aguilar não é um artista plástico convencional. A “Casa Azul”, no bairro do Bixiga é testemunha. Ali fervilhavam tribos diferentes da literatura, artes plásticas, teatro e música. Nada mais natural que um dia se tornasse o líder de um grupo de rock, a Banda Performática, que incendiava as noites do Lira Paulistana e contava com o jovem integrante, Arnaldo Antunes. Em cena, Aguilar transitava pela teatralidade “zecelsiana” com doses de Artaud. Seu Concerto de Piano com Luvas de Boxe foi o êxtase de um dos momentos fantásticos que essa cidade viveu.

Não por acaso, talvez por malvado sopro, boato ou invenção de Deus ou do Diabo, correu à boca pequena e aos ouvidos ávidos que Aguilar era bom de pintura e de performance. Vieram buscá-lo para exposições em vários países onde também integrou festivais de performances, ao lado de Nam June Paik, Dennis Oppenheim, Gina Pane e outras estrelas. Caminhar por suas exposições é encontrar nos vestígios respostas múltiplas, mágicas. Às vezes, opostas. Encontrar e desencontrar.

E continuar juntando pedaços, partes e cheiros, para entender este ser, não ser de um
outro planeta!

Aguilar vive em sintonia e identidade com seu trabalho, fato raro no cenário atual de arte, onde artistas descomprometidos com sua obra atuam apenas para agradar as regras do mercado.


SERVIÇO – Lançamento do livro 
José Roberto Aguilar: 50 Anos de Arte (Imprensa Oficial)
13 de março de 2014, quinta-feira, às 19h
Museu da Casa Brasileira – www.mcb.org.br
Avenida Brigadeiro Faria Lima, 2705, Jardim Paulistano   

 


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