Um programa estético que aponta deliberadamente para o desconcerto


Embora grande parte do projeto
de arte contemporânea participe de um impulso expansivo que o levou a apoderar-se do espaço e administrá-lo com o propósito de incluir o corpo do espectador, há quem resista a esse impulso mesmo em uma pequena escala, quase como um desafio à lógica imperante. Entre eles está Jorge Macchi, o artista argentino a quem o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires – MALBA dedica nestes dias uma exposição antológica que revê os últimos 25 anos de sua produção. A exibição não apenas reúne pela primeira vez trabalhos que se tornaram conhecidos por diversas apresentações individuais realizadas pelo artista desde o início dos anos 90 como também peças que foram concebidas em bienais e intervenções internacionais, e que até o momento eram desconhecidas no seu país. Este é o caso de El Cuarto de las Cantantes (O quarto das cantoras), a obra multimídia, uma das mais sugestivas da mostra, que foi realizada originalmente para a Universidade de Essex, baseada no poema Adiós (Adeus) da poetisa uruguaia Idea Vilariño. Nesta obra, as letras do seco texto de Vilariño aparecem e desaparecem vagarosamente projetadas sobre quatro placas de vidro que se encontram suspensas e devidamente alinhadas no espaço. Em sua lenta aparição, cada letra do trecho do poema é acompanhada por sons de Edgardo Rudnitzky, o músico que frequentemente compartilha esse tipo de projeto com Macchi. A obra enigmática, repleta de lirismo, reafirma a posição central da música na obra deste artista e, de forma geral, do som como portador de sentido. Assim, do som assume um papel fundamental em obras como Buenos Aires Tour, peça interativa que recebe o visitante no MALBA.

Originalmente concebida para a Bienal de Istambul em 2003, a instalação retrata um acontecimento fortuito, impossível de não ser relacionado com Borges e suas habituais derivas pela cidade. Delimitado pelas fendas de um vidro propositalmente quebrado sobre um mapa de Buenos Aires, esse acontecimento intencionalmente acidental define logo no início uma origem contraditória. A partir daí surgem os eventos desse acontecimento que Macchi elaborou com a poetisa María Negroni y Edgardo Rudnitzky. A obra se constrói a partir de objetos, sons e vozes que percebem a dinâmica de uma cidade (a obra é de 2004) ainda marcada pelo caos que inaugurou a crise de 2001. A complexa instalação, que demanda a concentração do espectador, abrange uma abundância de mapas, cadernos de anotações, cartões-postais e selos, que conduzem à memória individual da cidade. O acaso, o tempo e as constantes mudanças de escalas que ordenam a obra de Macchi são essenciais ao clima enigmático que paira em cada um de seus momentos.  Houve um tempo em que seus trabalhos visavam perseguir fatos inquietantes nas coincidências de linhas de jornal minuciosamente ordenadas. Ninguém poderá imaginar uma tarefa mais concentrada no registro mínimo e na iminência de um mistério.

"XYZ". Foto: Divulgação
“XYZ”. Foto: Divulgação

Admirador de Magritte, os trabalhos de Macchi frequentemente compartilham por outros meios o clima de pinturas como El Asesino Amenazado (O assassino ameaçado), de 1926. Seus recortes são quebra-cabeças, obsessivamente montados a partir das páginas vermelhas dos jornais. Mais do que um jogo, essa atividade parece guiada pela fascinação de uma pesquisa gerada em torno do que os franceses chamam de “fait divers” – feitos marginais carentes com interesses que adquirem relevância pela curiosidade de alguém que os orienta a seguir determinada direção.

Um ponto-chave na obra de Macchi são os mapas, alterados em seu sentido a partir do vácuo. De acordo com um programa estético que aponta deliberadamente para o desconcerto, o artista suprime textos e referências analógicas em mapas e guias em papel. Assim, o que permanece é apenas o esqueleto, resultado inquietante de um esvaziamento intencional. Dessa maneira, a forma sem texto não apenas perde sua função como também se desmorona, deixando exposta sua condição de estrutura inútil. É o que ocorre com o paradoxal Guía de la Inmovilidad (Guia da imobilidade), um guia de meios de transporte sem dados e reduzido a uma tabela de camadas sobrepostas.

Paralelamente à exibição do MALBA, que possibilita um panorama abrangente do trabalho de Macchi, duas intervenções de maior escala têm lugar no Museu Nacional de Belas Artes (A Noite dos Museus) e no Departamento de Arte da Universidade Di Tella (Refração).  Ambas colocam em evidência o enigmático jogo duplo do micro e do macro que habita a obra do artista como um todo, assim como instiga dúvidas sobre as certezas que se oferecem à nossa percepção.

 


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