Um “reality show” com conteúdo artístico

Os artistas Leandro Lima e Gisela Motta na sala do Através.Tv. Foto: Divulgação
Os artistas Leandro Lima e Gisela Motta na sala do Através.Tv. Foto: Divulgação

Em uma sala de 50 m², com paredes brancas, uma câmera permanece ligada 24 horas por dia, registrando tudo o que acontece, e as imagens resultantes são transmitidas ao vivo pela internet, ininterruptamente. Por esta sala passam – desde janeiro deste ano – artistas plásticos, ilustradores, músicos, dançarinos, arquitetos, educadores, antropólogos, poetas e outros profissionais de diferentes áreas, convidados para produzir dentro do pequeno espaço. A ideia básica: registrar e transmitir o processo criativo destas pessoas, “algo que não se costuma olhar”, como afirma a criadora da plataforma, a cineasta e publicitária Georgia Guerra-Peixe (mais conhecida como Joca).

O que é exatamente esta plataforma, intitulada Através.tv, a própria Joca prefere não definir com precisão: “É um lugar de laboratório? Não, mas já teve gente que usou assim. É um lugar para música? Não, mas já teve uma jam session. É um lugar para morar? Não, mas um artista já ficou dormindo ali dentro. É um lugar para fazer um programa de TV? Não, mas tivemos três fóruns gravados ao vivo. É um lugar de artes plásticas? Não, mas já funcionou como um ateliê algumas vezes.” O que o projeto busca, segundo ela, é promover a produção constante de conteúdo, criando um espaço de reflexão sempre focado nos processos criativos da arte e do comportamento. “Em geral vemos os trabalhos já prontos ou os artistas falando de suas influências, de onde beberam, mas pouco sabemos do processo”, diz ela. “E nele se revela muita coisa, há muita riqueza.”

A dançarina
Natália Presser durante performance no espaço. Foto: Reprodução YouTube

Encabeçado por Joca, pelo diretor Giuliano Saade e pelo produtor Moa Ramalho – que trabalham com uma equipe de mais nove integrantes –, o Através.tv se propõe justamente a ser uma plataforma híbrida, que pode receber em sua sala branca realizadores das mais variadas áreas. Os participantes são chamados para trabalhar a partir de grandes temas – que formam as chamadas “ondas” – e definem o número de dias que precisam, o tipo de produção que querem fazer e o material necessário. “Num espaço em branco. Num início vazio, que é preenchido por cada um que chega”, diz o manifesto do projeto.

Dentro de uma “onda”, que tem duração variável, podem passar diversos participantes, e ao fim do processo tudo fica registrado na página do Através.tv. “Além do que está ao vivo, sem cortes, fica o que a gente escolhe, as entrevistas que fazemos… Então a gente está montando, na verdade, um tipo de acervo de arte contemporânea”, diz Joca. Deste modo, o projeto possibilita também que os próprios participantes assistam aos vídeos e façam uma reflexão sobre seus processos e trabalhos. Para o público, segundo Joca, além de servir como inspiração, a plataforma pode ajudar a desmistificar o trabalho do artista, que fica exposto durante seu momento íntimo de criação.

Membros do coletivo SNH pintando as paredes da sala. Foto: Reprodução YouTube
Membros do coletivo SNH pintando o chão e as paredes da sala. Foto: Reprodução YouTube

A presença da câmera 24 horas por dia certamente influencia o comportamento dos artistas, e os idealizadores não negam este fato. Joca ressalta, no entanto, que aos poucos os participantes acabam se esquecendo do fato de que estão sendo filmados. “Esquecem no sentido de que param de se portar e se comportar voltados para a câmera. Ao mesmo tempo, tem uma coisa de que o compromisso fica. Não é igual a quando a pessoa faz o trabalho dela em casa ou no seu espaço próprio, onde se quiser pode parar no meio, desistir daquilo. Tem um comprometimento, e acho que a câmera faz parte disso. Cria-se um vínculo”, diz Saade. Na mesma linha, Joca concorda que a câmera também é uma provocadora, mas não coloca os participantes em uma situação de vigilância ou de “big brother” (há, inclusive, um ponto cego na sala): “Não precisamos negar o reality, no sentido de que uma câmera está ligada em tempo real. Mas tem conteúdo, essa é a diferença, a interface é outra. Talvez seja o lado bom desse jeito de fazer. Vamos aprender a usá-lo”.

Em números, o Através.tv começa a dar resultados satisfatórios, o que pode inclusive ajudar a viabilizá-lo financeiramente – por enquanto, o projeto é um investimento dos idealizadores, com sede em um espaço da produtora BossaNova Filmes, uma das maiores do País. A ideia é que existam as chamadas “ondas apoio cultural”, patrocinadas por empresas, ou outras “ondas” feitas colaborativamente e que sejam pagas pelos clientes. “Mas sem perder o DNA do projeto”, diz Joca. Para a diretora, mais importante do que um público “quantitativo” – “nós não somos uma emissora de TV” –, números como um alto tempo de permanência dos visitantes no site ou nos vídeos no canal do YouTube (22 minutos em média) são os que mais agradam. “Hoje as pessoas têm muita pressa na internet, mas o Através.tv precisa de tempo. E a gente não quer mudar isso, até por respeito aos artistas”, conclui.


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