Uma surpresa no percurso

A minha descoberta, no sentido de uma aproximação mais em profundidade do trabalho do Iberê se deve ao fato de ter podido mergulhar nos componentes todos de sua obra, quer dizer, não só, como se faz muitas vezes, contemplar as pinturas maiores, aquelas que se encontram nos livros, mas ter acesso ao acervo completo. Isso se deve, evidentemente, ao fato de a Fundação Iberê Camargo ter colocado todos os desenhos, as gravuras, as fotos e as pinturas em CD à minha disposição. Assim, com mais de 4 mil documentos, você têm a oportunidade de ter todos os elementos principais que compõem a visão global do Iberê. Eles são como um “atlas da memória”, como dizia o historiador de arte Aby Warburg, atlas esse que permite pensar em imagens o mundo do artista. Foi, para mim, uma ajuda fundamental para poder reconstruir uma lógica interna dessa obra, e também descobrir como uma imagem se transforma em outra, como ela estabelece uma rede de relações, engendra formas novas e, no entanto, coerentes com o trabalho anterior.

Essa caminhada infinita, sempre retomada, com vaivéns constantes através de desenhos às vezes muito rápidos, em que o componente gestual é importante, que são o dia a dia do artista e parte quase inconsciente da atividade quotidiana, foram para mim um revelador potente da dinâmica própria dessa obra. Por isso, pode chamar a atenção, mas a metade das obras que expus nunca foram mostradas. Muitas vezes, são obras menores do ponto de vista do acabamento artístico, mas elas são muito importantes, ao meu ver, os fios que tecem a trama da vida e da obra, o entrelace das formas e dos sentidos.
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Foi uma inesperada descoberta para mim ver como, através de imagens e textos que o próprio Iberê escreveu, de entrevistas que concedeu, se desenvolvia uma coerência estética que fazia possível montar uma exposição formal e tematicamente fluida e coerente. A leitura de textos dele explicita muito bem o que eu chamaria de “clima melancólico”, a importância da retomada memorial tão característica em sua obra. Foi mesmo um escritor; ele usava a palavra de maneira muito poética e, por isso, expus vários textos ao longo da exposição, como para acompanhar o olhar do visitante com a música da palavras muito sensíveis.

Além disso, há um elemento também fundamental na realização de uma exposição, e é a confrontação com a materialidade das obras e do espaço expositivo. Quando se vê as obras no espaço, como elas se relacionam entre si, novas conexões aparecem, jogos formais se sobrepõem às lógicas temáticas. É o encanto da montagem de uma exposição, um trabalho que faço sempre com muito prazer: tanto o espaço, como as obras impõem certas escolhas por causa de suas próprias forças. Às vezes, perturbam o seu belo esquema prévio, mas isso dá um impulso novo, e se encontram soluções inesperadas. Gosto!


Jacques Leenhardt é filósofo, doutor em sociologia e diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris.


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