William Kentridge e o grito contra injustiças sociais

A mostra Fortuna, de William Kentridge, traz ao Brasil uma vasta seleção de obras produzidas entre 1989 e 2012. Após apresentação no Instituto Moreira Salles, do Rio de Janeiro, e na Fundação Iberê Camargo, de Porto Alegre, é a vez do público paulistano se interar do processo criativo e da produção desse artista considerado o maior expoente da África do Sul nas artes plásticas.

William Kentridge nasceu em 1955, em Joanesburgo, onde vive até hoje. Cursou primeiramente Ciências Políticas e Estudos Africanos na Universidade de Joanesburgo antes de ingressar na Johannesburg Art Foundation e se dedicar às artes plásticas. Eis aí nesse percurso o seu interesse pelas questões sociais que norteiam a África do Sul desde o dramático período do apartheid, cujos vestígios estão presentes até hoje no cotidiano do povo sul-africano.

A exposição William Kentridge: Fortuna, a mais ampla de sua obra na América Latina, apresenta 38 desenhos, 27 filmes e animações, 184 gravuras e 10 esculturas, incluindo ainda séries inéditas. A curadora Lilian Tone acompanha a obra do artista há anos, a ponto de criar um fio condutor aparente, tanto pela temática como pelo processo de efetivação das obras. A visibilidade que a mostra proporciona ao público brasileiro desse compêndio é muito importante para o entendimento da cultura e sociedade da África do Sul, país que em parte se assemelha à evolução histórica, socioeconômica do Brasil. Ambos os países estão hoje em evidência sendo membros do BRICS (conjunto de países em ascensão econômica incluindo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Não podemos ainda nos esquecer de que a África do Sul recém sediou a Copa do Mundo, evento que acontece em 2014 no Brasil e que, sem dúvida, deixa traços marcantes – positivos ou negativos – por onde passa.

A curadoria apresenta minúcias dessa ampla produção que inclui desenhos, gravuras, ópera, esculturas, filmes, teatro e performance, que fazem parte de um todo com características bastante singulares e se tornaram sua marca inconfundível. A repercussão de sua obra se deve ao desdobramento de desenhos singelos que um a um dão vida a filmes de animação de grande complexidade de conteúdo e desdobramento visual. Essa dinâmica encanta e atinge o público em geral por sua dramaticidade, poética compreensível por todo o mundo, pois possui uma narrativa própria sem o recurso de falas ou textos. Suas obras têm enriquecido grandes mostras internacionais, como a Documenta, em Kassel, na Alemanha (1997, 2003, 2012); a Bienal de Veneza (1993, 1999, 2005); exposições individuais no MoMA, de Nova York (1998, 2010), no Museu Albertina, em Viena (2010), no Jeu de Paume, em Paris (2011), no Louvre, em Paris (2010), no Metropolitan Museum of Art, em Nova York (2005); e performances no Metropolitan Opera, em Nova York (2010), e no La Scala, em Milão (2011).

É em seu estúdio em Joanesburgo que esse potencial é concebido com uma restrita equipe de forma contínua, como é o caso da série de curtas-metragens Drawings for Projection, iniciada em 1989, e com obras recorrentes até os dias de hoje. Essa seria para o artista a base de sua criação. Em São Paulo, a curadoria e o artista se empenharam para apresentar simultaneamente, pela primeira vez, a série completa com os dez filmes existentes. Eles são acompanhados por 23 desenhos realizados como ponto de partida para esses curtas-metragens. De caráter quase didático, a mostra é oportunidade única de visibilidade e desbravamento do potencial de criação de William Kentridge. Os desenhos trazem uma aparência diferente das animações convencionais, devido a uma técnica trivial criada pelo artista e intitulada por ele de “cinema da idade da pedra”. Ele filma todos os quadros individualmente, resgatando assim as alterações que faz sobre o mesmo desenho produzido em carvão ou pastel. Nesse processo, ele revê e retrabalha a mesma obra apagando, adicionando, subtraindo, enfim recriando em cima de uma mesma ideia processual. Dessa forma, surgem características únicas recuperadas desse processo e que compõem a metamorfose do trabalho em que objetos banais passam por um processo de transformação quase que surreal, dando nova vida e continuidade a cenas premeditadas de curta existência. Eis aí um exemplo da potencialidade incansável de seu criador diante de nossos olhos que mal creem no que visualizam como um gato passando por transfigurações múltiplas: “Transformando-se em uma máscara de gás, um megafone, assumindo a forma de uma bomba”, conforme descreve a curadora Lilian Tone.

A mostra que acontece até 17 de novembro acompanha uma publicação inédita com todas as obras que fazem parte da exposição e inúmeros textos de especialistas que acompanham William Kentridge em seu vasto e amplo percurso, além de uma seleção de dez textos escritos pelo próprio artista e uma cronologia selecionada.


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