*Por Daniela Gillone
Uma construtora planeja a demolição de Aquarius, último prédio de estilo antigo que resiste na orla de Boa Viagem, no Recife. Clara (Sonia Braga), crítica musical que chegou à maturidade após superar um câncer de mama e a morte do marido, é a última moradora do condomínio. Sua decisão em permanecer no apartamento, mesmo com todas as unidades vizinhas desocupadas, pauta os acontecimentos, numa fusão do ideário antigo à realidade atual.
O filme se inicia com imagens de arquivo dos anos 1960, em preto e branco, de um Recife sem a clausura decorrente dos altos edifícios em área à beira-mar. Depois desses planos, encenações ambientadas na década de 1980 mostram Clara na praia e, em seguida, em seu apartamento, no momento de comemoração de aniversário de 70 anos de sua tia Lúcia (Thaia Perez). Em meio às homenagens prestadas à aniversariante intercalam-se flashbacks com cenas eróticas. São lembranças da revolução sexual que ela vivenciara. A memória surge, assim, como tema central e recorrente do filme. Também fica evidente a sensibilidade da jovem Clara (interpretada por Barbara Colen) em relação a seus parentes, amigos e filhos, assim como a altivez com que exibe o corte de cabelo curto em virtude do tratamento da doença que a fez perder um seio.
Essas cenas do passado funcionam como metáforas e não apenas da história sentimental da protagonista, mas da construção de um presente em que Clara, agora aos 65 anos, reage contra as negociações perturbadoras da construtora interessada em seu apartamento (o mesmo no qual viveu nos tempos de casada e onde permanece com suas recordações). Embora a situação pareça indicar uma conscientização sobre a exploração social provocada pelas grandes edificações (que igualmente evoca a noção freyriana que critica a estrutura da Casa-Grande com a Senzala estendida, frente aos mandos colonizadores), ela é colocada num contexto retórico mais amplo de resistência às atuais mudanças impostas.
A função metafórica se potencializa pelo esquema narrativo. Diego, jovem herdeiro envolvido com a especulação imobiliária (Humberto Carrão), se dispõe a usar táticas ardilosas para convencer Clara a vender seu apartamento. Entretanto, o que está em questão, não é apenas a desintegração social decorrente de empreendimentos que apagam a configuração de uma época, mas também a de evidenciar o sentimento de resistência que permeia a vivência da protagonista, cercada por sua coleção de LPs, livros e memórias, como verdadeiros arquivos do tempo. Daí a importância da trilha sonora, com músicas de Taiguara a Queen, passando por Roberto Carlos e Maria Bethânia, o som à beira do mar e outras técnicas precisas na elaboração do tempo suspenso que caracteriza o ambiente no edifício Aquarius.
A sutileza com que Sonia Braga compõe sua personagem faz toda a diferença para se perceber os conflitos que ela enfrenta, com os quais também se bate internamente. Clara passa a imagem de libertária e segura de suas convicções. Mas do ponto de vista de Ana Paula, a filha pragmática (Maeve Jinkings), ela é apenas a mulher que deixa todos preocupados por sua teimosia em relação àquele prédio estigmatizado como fantasma. Interessada na venda do apartamento, a filha pouco reconhece a subjetividade da mãe, autora de importantes publicações (entre as quais se destaca um livro sobre Heitor Villa-Lobos, mais um arquivo do tempo). Clara expressa a visão da filha com ironia arguta e reitera seu desinteresse pela oferta expressiva da construtora. Em outras situações de opressão, inclusive em conversas com o jovem herdeiro, se contrapõe à tipificação patriarcal da figura feminina.
O que mais provoca o espectador é a percepção de como a narrativa conduz sua reação aos padrões impostos. E o que mais vemos é uma Clara intensa em suas falas contra as imposições, sempre com argumentos certos e precisos em defesa da memória e de seu pertencimento no lugar onde deseja estar. A determinação da protagonista, evocada pela dignidade inflexível na expressão da atriz, sinaliza a sua rebelião diante de opressões denunciadas pela narrativa. Nessa construção, o diretor Kleber Mendonça Filho cria um ambiente como experiência e fruição que não deixa nenhuma dúvida sobre sua potência como cineasta.
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