Desde sua estreia, no último final de semana de agosto, que a série Narcos, mais uma original do site de compartilhamento de filmes norte-americano Netflix, é um dos assuntos mais comentados. A produção milionária chamou a atenção não só pela vasta propaganda, mas por se tratar de mais uma tentativa do mercado cinematográfico dos Estados Unidos de versar sobre uma das histórias da América Latina. Protagonizada pelo excelente Wagner Moura, Narcos até explora bem o tema do tráfico, sempre vivo devido à eterna discussão sobre a “guerra às drogas” empreendida pelos sucessivos governos norte-americanos, mas peca ao reforçar preconceitos e estigmas sobre a América do Sul.
Esteticamente, Narcos é primordial. A fotografia da série impressiona e não há dúvidas de que foram gastas muitas horas de edição e finalização para dar um tom quase perfeito à Colômbia dos anos 1980. Tudo contrasta com um enredo fraco e a pouca profundidade histórica da trama, que, em diversos momentos, revela total falta de conhecimento da história de Pablo Escobar e do próprio país. Não que a obra deveria ter um tom documental, já que é uma ficção, mas se os produtores se basearam em situações reais, deveriam ter o cuidado de explorá-los sem reescrever os fatos.
Com dois episódios dirigidos pelo brasileiro José Padilha, que também assina a produção executiva, Narcos já começa errando ao escolher um policial do Drug Enforcement Administration (DEA) para narrar os fatos, comprometendo a credibilidade de uma obra que deveria ser sobre a América do Sul. Outro problema é não explicar devidamente o contexto social e histórico da Colômbia da época. A série conta a história de Pablo Escobar, que se mostra o protagonista e o elo de sustentação da trama, mas ao mesmo tempo não menciona nada sobre ele e suas origens. Escobar foi um dos pioneiros do contrabando e, posteriormente, do tráfico de cocaína, mas seu crescimento na criminalidade não é obra do acaso, como tenta passar a série.
A falha crucial da produção é não explorar de maneira original os aspectos históricos e geopolíticos da América do Sul, abrindo espaço para a reprodução dos mais variados tipos de estereótipos do continente. Talvez isso tenha sido reflexo da pouca coragem dos produtores, que quiseram elaborar uma série a fim de agradar gregos e troianos, como bem suscitou Sylvia Colombo em sua crítica no jornal paulistano Folha de S. Paulo.
Sendo assim, todos os dez episódios da primeira temporada, que será sucedida em 2016, como já anunciou o Netflix, são marcados por estigmatizações precárias e clichês entediantes, como uma tentativa insaciável de mostrar como a Colômbia é um “caos”, em contrariedade com a “ordem” que reina nos Estados Unidos (em pelo menos dois momentos, o narrador oculto e onipresente, o agente Steve Murphy, fala do país sul-americano como um lugar em que a lei não existe ou não funciona). Ingenuidade pensar que uma produção deste tamanho não teria o maniqueísmo tradicional do cinema estadunidense, mas Murphy abusa dos termos “good guys” e “bad guys”, sempre relacionados aos EUA e à Colômbia, respectivamente.
Esta disputa entre o bom e o ruim fica clara quando o policial narrador, interpretado de forma pífia por Boyd Holbrook, faz suas considerações sobre os presídios colombianos logo nos primeiros episódios. A série passa ao telespectador que todas as penitenciárias do país estão repletas de corrupção e prostitutas, enquanto o sistema carcerário dos Estados Unidos é perfeito, e por isso os traficantes deveriam ser extraditados. Claro, é uma ficção, mas transformar os fatos de acordo com uma perspectiva ideológica é, no mínimo, desonestidade intelectual.
Veja que não está em questão o método cinematográfico utilizado pelos produtores para transformar a história em uma série de ficção, mas sim o sensacionalismo o qual Narcos está submerso. Os agentes do DEA são tratados a todo momento como “mocinhos”, e a embaixada dos Estados Unidos parece, em certas situações, ser um órgão mais decisivo que o próprio governo colombiano, em mais uma demonstração de superioridade dos norte-americanos.
O que salva na série é a atuação brilhante de Wagner Moura. O ator fez a lição de casa e entendeu a complexidade do personagem, com certeza o mais profundo que já intepretou. O brasileiro entendeu bem como Escobar enxergava as coisas, seus mínimos temores e seu temperamento equilibrado. Mesmo nas situações mais calamitosas, de mais violência e angústia, Escobar sempre se mostrou um homem calmo, capaz de parar e cultivar o pensamento.
Há de se dizer também que, apesar de todos os erros e visões estereotipadas em favor dos Estados Unidos – o que revela, aliás, muito da relação entre os dois lados das Américas – a série aproximou, pelo menos para quem tem acesso ao Netflix, uma das várias histórias de um continente eternamente distante dentro de si mesmo. Os brasileiros costumam enxergar os países vizinhos, muitas vezes, de maneira parecida ao retratado pelos próprios norte-americanos, sendo que, na realidade, compartilhamos as mesmas realidades, sejam elas boas ou ruins. Em outras palavras, Narcos nos aproximou de uma identidade latino-americana, profundamente buscada desde que as nações sul-americanas se tornaram independentes.
É tão real essa constatação que basta observar como Narcos já é um sucesso até entre quem não assistiu. A vida de Pablo Escobar e as várias facetas da Colômbia (aliás, um país muito parecido com o nosso) surgiram aos olhos dos telespectadores brasileiros como histórias incríveis, mágicas, fantasiosas, quase como obra de ficção mesmo, sendo que, na prática, elas existiram em um passado recente. O desconhecimento delas só prova o nosso distanciamento dos nossos vizinhos e, nisso, a série do Netflix colabora – ainda que de maneira grosseira – para uma aproximação. Em suma, vale a pena assistir.
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