E três anos depois, Tarantino volta a arena. Violento como sempre, polêmico como nunca. O consagrado diretor já falou de racismo e escravidão em Django Livre, três anos atrás. A eletrizante história do ex-escravo que quer libertar sua esposa das garras de um poderoso escravista do sul deu o que falar e levantou muitas questões sobre o tema da escravidão, que vem ganhando cada vez mais a devida atenção no cinema.
Desta vez, no entanto, a questão é tratada de modo mais atual. Embora em Django o racismo apareça (e o tempo todo), ele é tratado em sua forma mais arcaica. A escravidão, ainda que de forma incompleta, é uma etapa (mal) superada do problema racial. O diretor desta vez quis fazer diferente. O racismo descrito no novo longa é atual. Ainda que ambientado no longinquo Wyoming no final da década de 1860, a metáfora dialoga o tempo inteiro com o presente. Como?
O cenário, em todas as três longas horas de filme, é sempre o mesmo. Uma vastidão branca que domina a tela quase em sua totalidade, e um ponto preto ou escuro. A cena inicial do filme mostra um pequeno jesus crucificado de madeira rodeado por uma paisagem branca. A trama toda se desenvolve dentro de uma casa, de dimensões modestas e de madeira, perdida em meio a um branco sem-fim. Os personagens são, em sua maioria, brancos. O único negro é o protagonista Major Marquis Warren (vivido pelo sempre brilhante Samuel L. Jackson), que se destaca em meio aos demais brancos (e é detestado por vários deles por ser negro). Em outra cena, na qual Warren não está presente, aparecem duas outras personagens negras, também mortas por uma maioria de brancos. O branco é a cor dominante no filme, na paisagem, no cenário e na pele das pessoas. O negro, seja representado pelos objetos de madeira, seja pela pele dos personagens, é sempre engolido ou destacado em meio ao ambiente branco. E por ser solitário, aparece sempre como se estivesse comprimido, pressionado, quase esmagado. A forte nevasca do lado de fora por vezes quase invade o Armarinho da Minnie, e comprime todos na casa. Dentro dela, os brancos comprimem e hostilizam o personagem de Jackson.
A imagem é a de uma panela de pressão: onde o branco comprime e pressiona o negro até onde der. A primeira metade do longa fala sobre isso: a compressão e o confinamento. A atmosfera causada por essa contenção, seja entre as pessoas, seja na paisagem, é cada vez mais agressiva e violenta. A agressividade do filme, entre as pessoas, é cumulativa. O personagem de Samuel L. Jackson se sente relativamente à vontade no início da trama, mas vai sendo cada vez mais hostilizado conforme o número de brancos em cena aumenta. A paisagem acompanha essa mudança: a neve caindo no início é leve e causa pouco incômodo, mas pouco a pouco se torna uma insuportável nevasca. O branco se torna cada vez mais insuportável para aquele que não o é.
Da metade para o fim, o ritmo muda. A temporalidade antes lenta, quase arrastada e por vezes tediosa, se torna ágil e explosiva. O racismo aqui é uma panela de pressão: sempre violento e visto como um problema estrutural, ele aparece na primeira metade do filme (que é lenta) como um crescente. Na segunda metade, tudo explode. A hostilidade do racismo estrutural leva a uma (por que não?) guerra. É exatamente a história que Tarantino conta: a violência no longa, antes mais pontual e verbal, se converte em uma sucessão de tiros, coronhadas, cabeças explodindo e pessoas cuspindo sangue. Ela passa para o plano concreto.
Os Oito Odiados é, portanto, um tratado sobre o racismo. A metáfora é para uma sociedade que, ao repetir essa estrutura, produz monstruosidades e barbaridades como as vistas na segunda parte do longa. E quando a panela de pressão explode, ninguém sobrevive para contar a história.
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