Quando Anna Muylaert foi arrebatada pelo sucesso internacional em festivais de seu quarto longa-metragem, Que Horas Ela Volta?, a cineasta paulistana, em paralelo, finalizava a montagem do sucessor, Mãe Só Há Uma, que chega aos cinemas de todo o País nesta quinta-feira (21).
Difícil tarefa suplantar o êxito de um filme que, por seu conteúdo reflexivo sobre as relações de classe em nossa sociedade, fez grande sucesso de público e movimentou discussões calorosas na opinião pública. Porém, com a leveza narrativa das melhores cenas de Que Horas Ela Volta?, a diretora encara a missão de forma convincente. Em Mãe Só Há Uma, inspirada em um episódio real, o Caso Pedrinho, do menino que foi roubado na maternidade pela empresária Vilma Martins, Anna joga luz sobre tema que tem ganhado visibilidade: a transgeneridade.
Pierre, o protagonista do filme, interpretado por Naomi Nero, é um adolescente, de 17 anos. Como muitos outros, estuda, vai a festas e toca em uma banda de rock. Em uma das sequências iniciais de Mãe Só Há Uma, descobrimos que o garoto gosta de usar peças íntimas femininas, de se maquiar e pintar as unhas. Pouco depois, também sabemos que ele tem interesse equânime por meninos e meninas. Para ele, não há conflitos nessas escolhas. Pelo contrário, elas coexistem com naturalidade no convívio diário com sua mãe (Dani Nefussi) e a irmã mais nova (Lais Dias).
Essa normalidade, no entanto, é colocada em xeque quando sabemos que Pierre não é filho legítimo de Aracy, sequestrado por ela, recém-nascido. A revelação culmina na prisão de sua mãe, na entrega da irmã para um conselho tutelar e no convívio forçado com seus verdadeiros pais (interpretados por Matheus Nachtergaele e Dani Nefussi, em dupla atuação) e seu irmão biológico mais novo (Daniel Botelho).
A primeira indisposição entre Pierre e a nova família vem do fato de eles insistirem em chamá-lo de Felipe. Problema irrisório, se comparado à dificuldade de adaptar-se a um núcleo familiar conservador, que não saberá lidar com sua personalidade ambígua. Em uma sequência marcante do filme, os pais levam o garoto a uma loja de roupas e tentam impor a Pierre o que ele deve vestir: roupas masculinas formais, calça social, camisas polo e de manga comprida. Indignado, para desespero dos pais, ele surge do provador de roupas trajando um vestido curto, provocação que desperta a fúria de seu pai e a expectativa ingênua da mãe de que o menino vai “mudar com o tempo”.
Partindo desses conflitos, Anna amplifica o debate sobre a dificuldade de aceitação do outro sem a imposição de concessões. Recentemente, uma campanha publicitária da C&A, baseada na transgeneridade a partir do uso de roupas, despertou a fúria de setores conservadores de nossa sociedade e motivou um pedido enviado ao Conar, órgão que regulamenta o mercado de propaganda, com o propósito de tirar a peça de circulação na TV e na internet. Nesse contexto, um filme como Mãe Só Há Uma, embora circunscrito a uma questão menos abrangente do que seu antecessor, cumpre papel essencial: desenvolver, por meio da ficção, o sentido de empatia e alteridade, para questionar convenções consolidadas como a normatividade.
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