A transformação da paisagem humana no sertão nordestino

O ator Juliano Cazarré, que interpreta Iremar, o protagonista de Boi Neon (Foto: Divulgação)
O ator Juliano Cazarré, que interpreta Iremar, o protagonista de Boi Neon (Foto: Divulgação)

Em um dos trechos do manifesto Eztetyka da Fome, escrito por Glauber Rocha em 1965, o inquieto diretor baiano, autor de clássicos como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), defende que o comprometimento com a realidade do País e seu próprio miserabilismo foram fatores decisivos para transformar o Cinema Novo em um fenômeno de importância internacional.

Cinquenta anos depois, mesmo com a permanência de mazelas seculares, a realidade do sertão nordestino é completamente outra. Fato que pode ser atestado em Boi Neon, segundo longa-metragem de ficção do jovem cineasta pernambucano Gabriel Mascaro, 32, que estreia amanhã (14) nos cinemas de todo País.

Ambientado no sertão da Paraíba e de Pernambuco, o sucessor do drama Ventos de Agosto (2014) retrata um Nordeste pujante e rico, graças ao desenvolvimento do agronegócio e de polos industriais de confecção. Mas não espere de Boi Neon uma narrativa panfletária em defesa deste novo contexto socioeconômico. Na lente precisa e poética do cineasta pernambucano, este novo Brasil é, sobretudo, palco de transformações comportamentais.  

Leia resenha do filme

Antes de ser submetido ao crivo do público brasileiro, Boi Neon venceu o Prêmio Especial da mostra Horizontes do Festival de Veneza de 2015 e foi celebrado com Menção Honrosa no Festival de Toronto. Também foi exibido em mais de 30 mostras estrangeiras e conquistou outras 12 premiações, além de ter sido negociado para ser distribuído em 15 países.

Exibido em primeira mão no Brasil durante o Festival do Rio de 2015, o longa-metragem venceu quatro categorias da mostra carioca: Melhor Filme, Melhor Roteiro (Gabriel Mascaro), Melhor Fotografia (Diego Garcia) e Melhor Atriz Coadjuvante (Alyne Santana, que interpreta a menina Cacá).

Ao narrar a rotina de um grupo de trabalhadores que vive na estrada na boleia de um caminhão Mercedes 1313 conduzido por Galega (Maeve Jinkings), para ralar nos bastidores das vaquejadas,  uma das facetas milionárias deste novo sertão, Mascaro ignora o tom de realismo social tão caro a alguns títulos da cinematografia recente para, segundo ele, “lançar uma nova luz sobre essas transformações recentes do País”. 

Leia a seguir entrevistas com Gabriel Mascaro, Maeve Jinkings, a caminhoneira Galega, Juliano Cazarré, o vaqueiro Iremar, protagonista de Boi Neon que, nas horas vagas do árduo ofício, sonha em ser costureiro.

Gabriel Mascaro

Boi Neon trata de uma realidade contemporânea, o desenvolvimento agrário e industrial de regiões do Nordeste do País após décadas de abandono. No entanto, essa mensagem é quase subliminar. Como se deu a escolha de não fazer do filme uma “peça de propaganda” deste novo contexto socioeconômico sem, com isso, deixar de incluí-lo no universo dos personagens? 
O Nordeste foi apontado por políticos e economistas brasileiros, nos anos 1960, como a “região problema” do Brasil por causa do histórico de desertificação, fome, sede, fanatismo religioso e das revoltas populares. Na mesma década, o cinema e a literatura foram buscar nesta região a alegoria da luta de classes e a revolução camponesa. O Cinema Novo se apropriou da região enquanto experiência que cristalizou até hoje alguns signos de representação, como a ideia de preservação das tradições culturais, a ideia de valentia quase sacralizada e puritana do homem trabalhador e a possibilidade de este homem culturalmente enraizado trazer novos valores para reparar a crise identitária dos centros urbanos. Hoje temos outro contexto no Brasil. A região cresceu economicamente de forma muito veloz, é cosmopolita. Então o filme se alicerça num cenário contemporâneo de prosperidade econômica que rege novos signos, desenha novas relações humanas, afetos e desejos. É um filme sobre a transformação da paisagem humana. A ideia foi lançar uma nova luz sobre essas transformações recentes do País a partir de um recorte narrativo que segue a vida de um grupo de vaqueiros que vivem na estrada transportando bois para as festas da vaquejada, um dos maiores eventos de agrobusiness do Brasil. Tendo a vaquejada como palco alegórico dessas transformações em meio à paisagem monocromática do Nordeste, eu pesquiso as cores que reluzem as contradições do consumo e dilato noções de identidade e gênero em personagens que convivem com novas escalas de sonhos possíveis.

Essa temática de identidade e gênero é patente em quase todos os personagens e em várias sequências do filme. Esta é uma realidade idealizada ou você acredita que a sociedade brasileira está, de fato, empenhada nessas transformações?
É um tema delicado… Não diria que o filme corresponde ao real, tampouco que Boi Neon faz uma leitura idealizada. Diria que o filme suspende um mundo e, nessa suspensão, cria um jogo de ambiguidades que quebra expectativas. Interessa-me pensar mais nos muitos acontecimentos das pequenas coisas do que nos grandes acontecimentos das poucas coisas. Em Boi Neon, muitos acontecimentos mínimos acontecem no espaço do cotidiano dos vaqueiros. Ver potência nos pequenos gestos me parece uma leitura política urgente para o mundo em que vivemos. Tento iluminar esse tema de forma que o filme possa revelar novos contornos, novos relevos e novas erupções, mostrando tanto a violência quanto o prazer habitando o mesmo corpo. A câmera perscruta os espaços em seus lentos movimentos em busca dos personagens de forma a encontrar o lugar do corpo, mais do que o lugar do rosto. Aproximar a câmera neste filme era um gesto de esvaziamento. Os planos gerais neste filme devolvem aos personagens a ideia de força, presença, resistência. Os personagens do filme são seres simples, humildes, estranhos e diferentes, mas não querem fugir, e sim sonhar com novos devires naquele mesmo espaço.

 

Maeve Jinkings

A relação entre Galega e Cacá é permeada por sentimentos controversos, como o afeto de mãe e certo distanciamento. Como se deu a relação entre você e Alyne, e como foi possível extrair resultados tão tocantes nos momentos em que vocês contracenam?
Minha relação com Alyne foi muito próxima. Desde o início, houve curiosidade e empatia dos dois lados. Durante nosso processo de ensaio a levei para dormir comigo no quarto, ela ficava comigo durante as aulas de direção do caminhão, tomei conta de sua alimentação e higiene, desenvolvi autoridade sobre ela, todas essas funções de um adulto cuidando de uma criança. Mas só isso não seria suficiente. Estávamos falando de mulheres aprendendo a viver num mundo bastante hostil, uma mãe criando, sozinha, sua filha enquanto busca desesperadamente não deixar de viver sua própria vida. As relações são cheias de contradição e desejos frustrados, e para mim uma das maiores qualidades do filme é a forma como ele observa essa dinâmica sem julgamento. Tenho a impressão de que, se dependesse só de mim, talvez eu tivesse superprotegido Alyne durante o processo – e me pergunto se isso está ligado a minha origem burguesa. Nos ensaios pude entender que Galega teve uma vida dura e cria a filha de forma a que ela aprenda a se defender. É uma forma de amor. Fátima (a preparadora de atores Fátima Toledo) enfatizou muito essa característica nos ensaios. Fizemos exercícios onde pudemos viver a ternura e a raiva, nos dizer coisas boas e ruins, pedir amor e limite, como na vida. Além disso, Alyne tem um talento natural para viver o presente da situação fictícia colocada, característica fundamental para qualquer ator. Ela é incrível e nos conectávamos naturalmente enquanto vivíamos aquelas vidas.

Galega é uma mulher forte. Ganha a vida na boleia de um caminhão sem, com isso, abrir mão de sua feminilidade ou reprimir seus desejos. Como se deu a composição da personagem, do momento em que você a conheceu, na leitura do roteiro, até a conclusão do filme?
É sempre fascinante o processo de investigar um personagem, sempre me percebo encarando preconceitos e limitações da minha perspectiva de vida. A primeira desconstrução em favor de Galega foi perceber que, apesar de ser caminhoneira e levar esse bando de bois e homens na boleia, ela permanecia sendo feminina. Eu pensava nela mais masculinizada, uma estupidez da minha parte. Pude ver que frequentemente (as caminhoneiras) são superfemininas e vaidosas, apesar de viverem em um universo dominado por homens. Fico até pensando se viver num universo masculino acaba por provocar nelas uma necessidade de afirmação do feminino, sempre exercendo o poder que lhes cabe ao conduzir um veículo desse porte com grandes cargas. Aliás, mais de uma vez escutei delas o quanto tinham prazer na sensação de poder que esse ofício lhes trazia. No caso da Galega, foi fascinante explorar esse espaço de poder em que ela se coloca, desde a direção do caminhão até o palco onde deixa os homens literalmente abaixo de si implorando por mais coices, pois era isso que eu escutava dos vaqueiros reais durante as filmagens da dança: “Mais coice!”. Para mim, parecia uma forma de subverter as relações de poder num lugar onde ser mulher não é nada vantajoso.

Juliano Cazarré

Quando foi convidado para o projeto, que impressões você teve sobre o personagem Iremar? Considerou verossímil? Como foi lidar com características tão distintas, como o cotidiano bruto das vaquejadas e as sutilezas do universo da costura em um mesmo papel?
Para mim, fez sentido na hora. Imediatamente consegui enxergar o personagem que o roteiro mostrava. Conflitos e contradições sempre são um ótimo material para se trabalhar. São os conflitos que movem as pessoas. Foi curioso esse processo de deixar o corpo endurecer e embrutecer na lida com os animais, no contato com a caatinga, as rochas, os cactos, os espinhos da Paraíba e de Pernambuco. E, ao mesmo tempo, cultivando um espírito leve, procurando a beleza nessas mesmas coisas, rezando bastante. Foi um período em que li muito a Bíblia e rezei. Eu sentia muita saudade da família também. Acho que isso me deixava sempre bastante à flor da pele. Fiquei lá, vivendo, quase três meses.  

Há sequências do filme em que os desejos pessoais dos personagens migram para um erotismo impregnado de lirismo. Como foi realizar essas cenas e que compreensão você tem dessa característica de Boi Neon?
Eu vejo em Boi Neon um erotismo sutil, mas suculento. Só o fato de ele trazer a nudez masculina e feminina, lindamente equilibradas, já é incrível. O filme retrata um movimento que está acontecendo no mundo todo hoje em dia, que é uma redefinição das fronteiras, ou uma diluição das fronteiras entre os gêneros. Boi Neon é sexy, mas não é sexista, não é machista. Gabriel Mascaro identificou muito bem esse movimento na sua aldeia e construiu um filme universal.

Veja o trailer oficial de Boi Neon


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