Cinema contínuo do mar

Ana Martins Marques - Foto: Reprodução
Ana Martins Marques – Foto: Reprodução

Há muito mar em Minas Gerais. Metáfora do infinito ou espaço majestoso que separa os mundos, o mar é parte da paisagem poética mineira, de Drummond a Murilo Mendes, e destes à nova geração. Em sua terceira coleção de poemas, O Livro das Semelhanças, Ana Martins Marques escreve sobre essa ausência-presença com precisão lírica: “aqueles que nasceram longe do mar/aqueles que nunca viram o mar/que ideia farão do ilimitado?/que ideia farão do perigo?/que ideia farão de partir?/pensarão em tomar uma estrada longa e não olhar para trás?/(…)/pensarão em lâminas revólveres veneno?”

Essa especulação conjugada no “ão” latido, desesperado, encontra leveza na frase final: “pois eu só penso no mar”. As páginas de Ana têm mesmo essa leveza aparentemente impossível: estão sempre cheias, inundadas, mas conseguem respirar. Os sentimentos são intensos, as ideias complexas, mas as frases são curtas e as palavras simples (muitas delas recorrentes, como mostra o divertido “Índice Remissivo”, poema parte da seção “Ideias para um Livro”). Ana pensa a poesia dentro do poema, e daí para a vida. Joga com o humor, a ironia, mesmo quando o amor é impossível (“no amor não deve valer a lei do mais forte/ nem mesmo a do mais forte amor”).

Nascida em Belo Horizonte, em 1977, Ana fez mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Literatura Comparada. Revisora na Assembleia Legislativa de BH, começou a escrever cedo: “Talvez por volta dos 8 ou 9 anos. Fui uma criança muito tímida, e a descoberta da leitura e da escrita abriu para mim um espaço de liberdade, de jogo, de aventura. Acho que, se tivesse que citar um livro que me levou a tentar escrever poemas, ainda na infância, seria Ou Isto ou Aquilo, da Cecília Meireles. Era uma edição ilustrada e até hoje os poemas surgem para mim associados àquelas ilustrações, como se os textos e as imagens fossem uma coisa só. Foi possivelmente o meu encontro inaugural com a poesia. Apesar disso, demorei bastante para publicar (só fui lançar meu primeiro livro com mais de 30 anos). Ainda hoje sinto que a leitura e a escrita funcionam para mim como um espaço meio clandestino, de descoberta.”

“Mas sei também, como todo mundo que foi tocado em algum momento pela literatura, que existe uma potência de transformação, ou ao menos de alegria, no encontro com alguns textos, e que esses encontros podem definir destinos, se eles se deixarem definir”

A Vida Submarina (Scriptum) é de 2009. Ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte. Dois anos depois, veio o segundo livro, Da Arte das Armadilhas (Companhia das Letras), que recebeu o Prêmio Alphonsus de Guimaraens. “Vejo mais proximidades do que diferenças entre O Livro das Semelhanças e os anteriores – a presença dos objetos e do mar, os poemas sobre poemas, as séries, algumas figuras que retornam (Ícaro, as sereias…). Nos dois primeiros livros havia um conjunto de poemas que giravam em torno dos espaços da casa e dos objetos cotidianos; no último, é o próprio livro que aparece como objeto, com poemas dedicados a cada um de seus elementos – capa, epígrafe, índice, contracapa… Tenho a impressão de que esse é um livro mais reflexivo do que os anteriores, e também de que experimentei mais – nas formas, nos temas, nos procedimentos –, mas não sei se essa impressão se confirma na leitura.”

A impressão se confirma, o que não significa que essa reflexão ou experimentação tenham se dado a priori: “Vou escrevendo os poemas, e só posteriormente procuro ordená-los a partir de determinadas linhas de força, temas, imagens, recorrências. No caso das séries, que estão presentes também neste livro (a série de poemas sobre o próprio livro, toda a seção das ‘Cartografias’ e das ‘Visitas ao Lugar-Comum’), o procedimento é um pouco diferente: os poemas já vão sendo escritos de forma mais articulada. Ainda as­­sim, há uma etapa posterior de arranjo e organização dos textos. Essa etapa é ao mesmo tempo uma operação de leitura e um novo processo de escrita, porque a sequência em que os poemas aparecem no livro muitas vezes alte­ra-os significativamente”.

Mais que isso, a sequência – e principalmente o conteúdo – pode alterar o leitor e a autora, ou abrir novas perspectivas: “Gosto muito de um trecho do livro Literatura, Defesa do Atrito, da ensaísta portuguesa Silvina Rodrigues Lopes, em que ela diz que os textos, como os oráculos, são sempre já relação, e que por isso é impossível medir o tipo de alteração que um poema desencadeia no mundo ou nas pessoas. Ela diz ainda que o texto não pode garantir ou dirigir as mudanças, mas ele abre a possibilidade da mudança, ao permitir que o leitor refaça a compreensão que tem de si mesmo e do mundo. As consequências de um texto, então, são imprevisíveis, porque o texto é sempre um encontro, ele depende de uma aceitação, de um ‘sim’, como qualquer presente. Não gosto desses discursos celebratórios, que romantizam o papel da literatura, que apresentam a leitura como panaceia. Sei que o alcance dos poemas, suas possibilidades de ‘fazer acontecer’ são limitadas. Mas sei também, como todo mundo que foi tocado em algum momento pela literatura, que existe uma potência de transformação, ou ao menos de alegria, no encontro com alguns textos, e que esses encontros podem definir destinos, se eles se deixarem definir”.

POEMA:
“Há esses dias em que pressentimos na casa

a ruína da casa
e no corpo
a morte do corpo
e no amor
o fim do amor
estes dias em que tomar ônibus é no entanto perdê-lo
e chegar a tempo é já chegar demasiado tarde
não são coisas que se expliquem
apenas são dias em que de repente sabemos
o que sempre soubemos e todos sabem
que a madeira é apenas o que vem logo antes
da cinza
e por mais vidas que tenha
cada gato
é o cadáver de um gato”


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