Crônica de uma desilusão política

O jornalista e escritor Osvaldo Peralva na década de 1960, em sua sala de trabalho no "Correio da Manhã", diário que dirigiu entre 1963 e 1969 - Foto: Jorge Gafner
O jornalista e escritor Osvaldo Peralva na década de 1960, em sua sala de trabalho no “Correio da Manhã”, diário que dirigiu entre 1963 e 1969 – Foto: Jorge Gafner

A cena se passou na sede do Kominform, o organismo que articulava as informações dos partidos comunistas de todo o mundo, em uma vila da cidade de Bucareste, na Romênia. Durante uma festa de despedida regada a muito álcool, o soviético Mark Borissovitch Mítin, diretor do jornal do Kominform, estalou um beijo hollywoodiano na boca de um dirigente prestes a ser transferido para Moscou. Nada além de uma demonstração russa de apreço. Em seguida, o diretor beijou na boca representantes de outros países comunistas. Na vez de cumprimentar dignatários de países capitalistas, como a França e o Canadá, ele distribuiu beijos na face. Por fim, apertou as mãos de representantes de países que considerava “semicoloniais”, como o Brasil e a Argentina.

“Não exagero. Não invento. Não pilherio. Aconteceu assim”, escreveu o jornalista brasileiro Osvaldo Peralva no livro O Retrato, ao mostrar como as manifestações de afeto de Mítin dependiam da posição hierárquica do “companheiro”. Afinal, na vila cercada por muralha e soldados armados onde se editava o jornal do Kominform, faltava o igualitarismo apregoado na propaganda do movimento comunista internacional. Entre as 500 pessoas que tralhavam e viviam na sede do Kominform, imperava a supremacia soviética e o culto à personalidade, retratados de forma magistral no livro de Peralva.

Com muita perspicácia e nenhuma condescendência, Peralva faz em O Retrato um inventário de sua trajetória no Kominform, onde atuou em meados dos anos 1950, como representante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em um esquema em que alguns “eram mais iguais” do que outros, ele participava da direção colegiada do semanário do Kominform, um jornal de nome quilométrico – Por uma Paz Duradoura, Por uma Democracia Popular. Com apenas quatro páginas, o jornal era editado em 21 idiomas e circulava por todo o mundo, defendendo as posições soviéticas no cenário internacional. Apaixonado pelo comunismo desde a juventude, Peralva nunca planejou chegar ao Kominform. Estava com 36 anos, na Escola do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), quando foi escalado para a missão, no começo de 1955.

Naquela época, o jornalista desconhecia os crimes do período stalinista. Acreditava que degredos em campos de concentração da Sibéria eram invenções da imprensa ocidental. Ainda assim, embarcou para Bucareste desconfiado de que seria um castigo. Afinal, chegou a ouvir de um dirigente que o posto no Kominform seria uma oportunidade para ele se “reabilitar” dos erros cometidos na escola do partido, em particular do criticismo. Não havia motivo para tanto. O esquema da escola era abaixo da crítica. Faltava liberdade. Sobravam vigilância e suspeitas. Por motivo de “segurança”, nos 18 meses que passou em Moscou, Peralva conseguiu mandar apenas dois bilhetes para a mulher, que ficara no Brasil.

Como os outros brasileiros que passaram pela Escola do Partido, Peralva quase não teve contato com os moscovitas, pois não tinha permissão para sair sozinho às ruas. Entre outras justificativas, diziam que espiões estrangeiros infiltrados no país poderiam identificá-los, para posterior perseguição. “Ao todo, durante um ano e meio, saímos de casa umas dez vezes. Fomos duas vezes ao Teatro Bolshoi, uma vez ao metrô, uma vez em passeio de lancha pelo rio Moscou, uma vez à colina Lênin, para de lá assistirmos à iluminação da cidade e aos fogos de artifício na noite de Primeiro de Maio, uma vez no 7 de novembro de 1954, desfilando junto com alguns soviéticos da Escola do PCUS, na festa da revolução bolchevista, e umas quatro vezes a museus”, enumerou Peralva.

Foto: Reprodução
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Seu livro, que na parte final disseca o Partido Comunista do Brasil, foi publicado primeiro em capítulos, no decorrer de 1960, no jornal O Estado de S.Paulo. No mesmo ano, O Retrato ganhou edição em livro, pela Editora Itatiaia. Dois anos depois, foi publicado novamente, pela Editora Globo. Depois, ficou mais de três décadas completamente esquecido. Nesse período, a vida de Peralva passou por diversas mudanças, a começar pelo desligamento do PCB. Desiludido com a versão brasileira do totalitarismo político soviético, ele até tentou fundar um novo partido depois de se afastar do PCB. Desistiu ao flagrar-se reproduzindo erros similares aos que criticara, mas jamais abandonou a crença no socialismo. Passou a colocar em primeiro plano o termo democracia.

Vinculado ao Correio da Manhã entre 1963 e 1969, Peralva ajudou a transformar o jornal carioca em trincheira para a resistência possível ao golpe civil-militar de 1964. Não deu certo. Depois da decretação do AI-5, em dezembro de 1969, acabou dividindo cela com o jornalista Zuenir Ventura, o cartunista Ziraldo e o psicanalista Hélio Pellegrino. Um dos motivos da prisão de Peralva era a sua recusa em identificar os personagens citados em O Retrato apenas pelo pseudônimo. Exilado, atuou como correspondente da Folha de S.Paulo em Tóquio, no Japão, e em Praga, na extinta Tchecoslováquia. Só voltou para o Brasil depois da Anistia, em 1979, continuan­do a trabalhar para a Folha, onde integrou o Conselho Editorial. Pouco antes de morrer, em 1992, o jornalista fez uma nova revisão (basicamente ortográfica) de O Retrato, relançado agora pelo selo Três Estrelas.

Se as críticas de Peralva não fossem tão pertinentes, o relançamento de O Retrato no momento em que o radicalismo de direita cresce de forma assustadora no Brasil poderia parecer uma provocação. De sua privilegiada posição no Kominform, o jornalista esteve entre os primeiros brasileiros a se dar conta dos crimes de massa praticados na União Soviética no período de Joseph Stálin (1924-1953) e a encarar de frente a desilusão com o sistema político que acalentara desde a juventude. As atrocidades foram denunciadas por Nikita Kruschev no 20o Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em fevereiro de 1956, mas poucos tomaram conhecimento. Durante algum tempo, divulgou-se inclusive que o documento, conhecido primeiro como Relatório Secreto, não passava de uma invenção da CIA, o serviço de inteligência americano.


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