John Milton morreu há 340 anos, pobre e cego. Um dos maiores poetas do século 17 teve papel nada desprezível na história da Inglaterra. O Paraíso Perdido, sua obra-prima, é um poema épico sobre a queda do homem e do anjo Lúcifer. Félix, o jovem protagonista de Anatomia do Paraíso, quarto romance da paulistana Beatriz Bracher, fica obcecado com o livro e se debruça sobre ele para uma tese de mestrado. Sua relação com a leitura passa não apenas pelo lado intelectual, mas também pelo erótico e sensorial, assim como sua relação com a vida. Vanda, a vizinha, está grávida dele. Negra, de origem pobre, é determinada e objetiva: estuda Medicina, trabalha como professora numa academia e como técnica de autópsia num instituto médico legal. E ainda cuida de Maria Joana, a irmã no início da adolescência.
Afeita aos jogos de vozes, marca de sua literatura, especialmente no aclamado romance Antônio, de 2007, segundo lugar no extinto Portugal Telecom, em que cada capítulo é narrado por um personagem diferente, Beatriz escolheu pela primeira vez o narrador em terceira pessoa. Mas o efeito é de grande intimidade, tal é o poder das cenas descritas, nas quais às paixões dos personagens divinos, eleitos e caídos, sobrepõem-se a paixão dos pequenos grandes mortais e suas rotinas sufocantes, permeadas por intenções ambíguas, sentimentos atravessados, desejos proibidos – tal como nos versos de Milton.
Essa força em sua escrita parece ter muito a ver com sua trajetória, como se verá mais adiante. Formada em Letras, em 1992 Beatriz fundou, com alguns parceiros, a Editora 34, da qual foi sócia e diretora até 2000. Foi quando resolveu tirar um ano sabático para escrever e, de tanto que gostou, não voltou mais. Dessa primeira experiência surgiu Azul e Dura. Dois anos depois foi a vez de Não Falei, romance abertamente político. Em seguida, além do mencionado Antônio, lançou dois livros de contos: Meu Amor, em 2009, e Garimpo, que recebeu o prêmio da APCA de 2013. Ela também escreveu roteiros para filmes de Sérgio Bianchi e Karim Aïnouz.
Em conversa no seu belo escritório numa vila em Pinheiros, São Paulo, cheio de livros, quadros e plantas, para onde vai todos os dias, com disciplina serena, Beatriz fala de sexo, violência e questões de família em seus livros. Entre outras coisas, fala também, no seu jeito elegantemente aéreo, mas que vai ganhando firmeza e precisão, do diálogo com outros autores, outra marca forte na sua escrita.
Brasileiros – Como você chegou no Paraíso Perdido?
Beatriz Bracher – A minha ideia era fazer um livro em que a relação de um rapaz com a literatura fosse algo tão intenso, erótico e amoroso quanto a relação dele com a vida. Eu já tinha lido o Paraíso Perdido e não era especialmente encantada pelo livro, mas fiquei muito impressionada com a descrição das sensações e do lado físico, de como os anjos são musculosos e usam capacetes e lanças, de como o corpo de Eva é coberto pelas tranças e bonito, de como você cheira o inferno e sente a terra… eu achei curioso, porque a mitologia do nascimento, de onde viemos, Adão e Eva, é um dos temas mais espirituais, e o Milton o expõe de forma tão carnal! Achei legal que fosse esse livro que o Félix estivesse querendo analisar e, na verdade, viver – ele vai vivendo o livro, né? E entendi também que era um livro sobre a construção da ideia de mulher e da ideia de homem.
Olhando aqui o seu escritório, os diagramas que você faz para organizar a trama, as páginas de referência grudadas na estante, essas edições antigas do Paraíso Perdido, dá a sensação de que sua relação com a literatura também é bastante intensa.
Acho que sim. É que a do Félix acaba sendo quase que só assim, quando você vai ver ele não tem um estudo sobre o Milton, que é o tema dele. Também prefiro não estudar os autores que leio. Acho que consegui ler o Paraíso Perdido por não ter uma pretensão de me relacionar com ele, me deixei surpreender pelo livro e por caminhos que eu não conhecia antes.
Você acha que estudar muito tira o encanto? A surpresa?
Acho que, se você lê com a expectativa de estudar o autor e situá-lo numa determinada época, trava. O ideal para mim é no primeiro contato não saber qual é a língua original dele, datas e tal. Prefiro pensar que foi um “irmão”, no sentido de humanidade, que escreveu. Me impressiono muito como a gente consegue ler Homero ainda hoje e gostar. Um cara de dois mil anos atrás. Essa irmandade entre escritores e leitores que perpassa épocas e terras e tudo. A função do estudo é separar a literatura de cada época, país, o que é bom para uma análise, mas desinteressante quando se pensa que você faz parte de uma coisa muito antiga e muito bonita, muito grande. A minha relação desde a adolescência com a literatura é uma coisa muito importante para a minha vida. É a minha vida. Assim como casamento, filhos, comer, beber, fazer sexo, ler. Com a mesma intensidade ou “desintensidade”. Foi uma percepção cada vez mais real na minha vida, de como entendo o mundo com as palavras dos livros que eu li. Como na doença e a morte recente da minha mãe, quando me vinham livros na cabeça. E não que isso me ajudasse a pensar, mas como eu acompanhava aquilo com aquelas palavras, o instrumental era aquele. Formamos a nossa personalidade pelas pessoas com quem convivemos, as ideias e os livros de ficção que lemos. Então a forma como esse livro está montado, a quantidade de trechos grandes de outros autores que estão ali, é, de alguma maneira, o assunto que eu queria discutir no livro também. Esse é um livro de livros, de alguma maneira.
Esse diálogo com outros autores faz parte da sua literatura como um todo, não?
Faz, e não só como citação, mas, exagerando, “como carne”, algo que não está só para exemplificar ou ilustrar ou ajudar um pensamento, é o pensamento em si mesmo daquela pessoa. Porque tem um pouco de colagem, né? Tanto nesse livro quanto nos outros sempre tem essa coisa de misturar outros autores, às vezes os personagens são colagens também. Quando eu estava me formando, na década de 1980, falava-se muito no pós-modernismo. E sempre com muita crítica porque seria o esvaziamento da modernidade, da ideia de que a literatura carrega uma mensagem forte, assim como as artes, de inovação, de mudança. E o pós-modernismo, de acordo com determinadas críticas, seria um arremedo de escolas. Você pega o Romantismo, o Barroco, o Modernismo, o Surrealismo e mistura aquilo tudo. Eu penso se os livros que faço não são um pouco uma colagem de épocas diversas, de literatura de épocas diversas. Mas de jeito nenhum sinto que ela chega vazia. Porque realmente, como todas as escolas me tocam, acho que eu faço como se fosse uma colagem modernista, um “pós-modernismo moderno”. Para mim, por exemplo, o Barroco diz muito, assim como o Modernismo ou o Concretismo são coisas que me tocam, me emocionam. Talvez também exista aí uma desambição que é boa. Não há nenhuma ambição revolucionária na forma, sendo que muitas formas diferentes estão acontecendo. É como se isso permitisse que elas acontecessem sem grupos ou sem escolas. Dois dos autores que eu mais gosto, Nuno Ramos e Rubens Figueiredo, são muito diferentes. Os instrumentos que eles usam, o estilo, os assuntos, é tudo diferente, e ambos são ótimos! Como se a ausência de um movimento permitisse uma expressão mais variada.
Seus próprios livros têm muito essa diversidade, na forma, no estilo, mas alguns temas parecem ser mais frequentes, como sexo e violência. É isso?
E família também. Minha mãe dizia: “Veja o Truffaut, ele teve uma vida tão difícil, foi preso e tudo, e faz filmes tão alegres. Por que você escreve assim? Será que você teve uma vida tão ruim para escrever essas coisas”?
E o que você respondia?
Eu dizia, não sei, é o que sai. Em geral, não sou uma pessoa agressiva, mas são coisas que têm que sair por algum lugar e que saem na escrita. Acho que tenho uma sensibilidade muito grande para relações de opressão, humilhação. É o que mais me faz sair de mim, fico muito brava, muito incomodada. Vivemos num país muito violento e a violência aparece em muitas formas, explícita, nas relações, na economia, na bagunça do Judiciário que se reflete na polícia, na ação dos políticos, muitas vezes nas relações de professores com alunos…
Você se lembra quando descobriu que seria escritora?
Desde 12, 13 anos queria ser escritora. Gostava de contar histórias para os primos na fazenda. Às vezes escrevia histórias. Mas era algo tão importante para mim que eu não tinha coragem de assumir. Só fazendo a editora 34 e analisando os originais é que entendi que é tudo mais simples. Você pode não fazer um livro superbom, mas tudo bem. E também você só vai saber que um livro é superbom daqui a cem anos. Vi que não era preciso ter medo, nem achar que eu seria uma escritora maravilhosa. Tirei um ano sabático da editora, que já estava firme, com uns 200 títulos no catálogo, e nunca mais voltei.
E como foi a experiência de escrever um primeiro livro, o Azul e Dura?
Foi muito legal e eu tive certeza de que era o que queria fazer porque era algo que envolvia tudo, toda a minha energia estava naquilo. Nunca tinha me envolvido tão completamente ao fazer alguma coisa. Senti que não tinha que me esforçar muito. Então você vai escrevendo e corrigindo. E é na correção que começa mesmo o trabalho autoral. Porque aí você tem a consciência do que está fazendo. Num primeiro momento é quase inconsciente, depois você vai entendendo. No final você pensa: se o forte é essa linha, então vou mantê-la e o resto vou ter que tirar.
Você chega a fazer algum plano, estabelece alguma regra ou cria uma situação específica para deslanchar a escrita?
Tenho uma rotina que é escrever toda manhã. E, mesmo que eu não consiga escrever, tenho que ficar aqui, não posso ficar viajando pela internet ou fazendo outras coisas. Ou às vezes fico lendo coisas que vão me ajudar naquele livro. Muitas vezes, logo entendo o que quero fazer e faço um plano de capítulos, das coisas. Aí, em uma semana, o plano não é mais aquele. Já tenho que alterar. Escrevo outro plano. Esse livro aqui era em quatro vozes. Os narradores do Félix e da Vanda são na terceira pessoa, mas são diferentes: o do Félix é de pensamento interior e o da Vanda é mais realista. E havia ainda uma outra voz que era a da Maria Joana, com 50 anos, contando como de fato as coisas tinham acontecido ou como ela via aquilo; e uma outra que era do Rubens, pai do Félix, escrevendo dez anos antes no mesmo apartamento, o Félix ainda pequeno. Achei que estava complicado e tirei. Então vai mudando. E faço essas anotações, que uso depois. Às vezes jogo I Ching para tomar decisões.
Seus livros parecem despertar muito interesse no leitor que também é escritor. Porque eles discutem literatura, o processo da escrita e há um clima de solidão que o escritor reconhece.
Talvez. A escrita é muito parecida com a leitura. Em todos os meus livros há discussão de poesia, faz parte da minha vida. Eu dei varias versões do Anatomia do Paraíso para vários amigos lerem. O Nuno (Ramos) não havia gostado, irritou-se muito com a religião, um assunto que o incomoda. O Cide [Piquet] da 34 também não parece ter curtido muito. Mas ele fez bons comentários, um trabalho de preparação de texto muito minucioso. E foram justamente os dois que não gostaram do livro que me ajudaram. É preciso ter sangue-frio e autoconfiança nessa hora. E pensar: eles estão errados, o livro é bom, mas vou rever o que eles criticam. Mudei algumas coisas que eles sugeriram.
Como foi voltar ao romance depois de oito anos?
Eu escrevi vários contos a pedido de revistas e reuni tudo e mais alguns em Meu Amor, de 2009. Gosto de escrever contos, mas a minha praia é o romance. Acontece que um desses contos acabou virando o começo da Anatomia do Paraíso. Desde 2009 tento escrever esse livro. Morei durante três semanas no Rio e fiquei num apartamento, que é do Félix.
No conto Garimpo há uma digressão sobre a preocupação do Hitchcock com o espectador. Você tem preocupação com o leitor? Pensa nele quando está escrevendo?
Muitas vezes quando arrumo o texto estou preocupada se ele está difícil demais, se é compreensível para o leitor, porque livro bom é um livro que o leitor compreende. Ao pensar que o livro tem que ser forte, às vezes até o deixo obscuro propositalmente, para que o leitor se confunda ali para esclarecer mais à frente, para ser uma surpresa, uma coisa boa. Então acho que estou pensando no leitor o tempo todo, mas não num tipo específico. Na verdade, eu queria escrever um livro que mais gente entendesse. Achei que fosse esse livro; ele tem menos mudanças formais, é mais simples, se passa no Rio, fala de praia, que é um cenário conhecido, e o narrador na terceira pessoa ajuda, fica mais fácil.
Com a sua experiência como editora, como você vê o mercado hoje?
Estou muito afastada dessa área. O boom da literatura brasileira de uns anos atrás é responsável pelo aumento pequeno das vendas de livros, mas criou-se um interesse maior pelo assunto e os escritores estão sendo chamados para participar de festivais, dar palestras, seminários, uma coisa dos governos Lula e Dilma, talvez, que deram dinheiro para as prefeituras para isso (pena que havia um mau uso dessa verba). De qualquer forma, os escritores não vivem dos seus livros, mas porque escrevem. São bem raros os que vivem só da venda de livros. A venda de paradidáticos também fez uma diferença enorme para as editoras médias e pequenas. Há uma brecha para editoras boas crescerem. Mas os governos não estão comprando nada este ano, acho que está apertado para todo mundo.
E como você vê a qualidade do que se está publicando?
Tem muita gente boa hoje. Temos o João Gilberto Noll, que eu acho incrível, o Nuno Ramos e o Rubens Figueiredo, que são muito bons, o André Sant’Anna, o Milton Hatoum, o Bernardo Carvalho. São pessoas que em 50 anos vão continuar sendo muito boas e todo mundo vai continuar lendo. Se num período temos todas essas pessoas escrevendo, é muito bom o nível da literatura. Isso não quer dizer que não tenha muita coisa ruim, modas que vão e vêm. Dessa turma, pelo menos dois vão ficar para sempre. Da época do Graciliano, quem sobrou? Guimarães Rosa, Zé Lins do Rego um pouco… Machado e Graciliano Ramos são para mim o topo.
E seus livros, como você vê?
Eu releio o que escrevo, mas alguma coisa me envergonha. Enquanto escrevo acho uma porcaria, bom, uma porcaria, bom… Quando acabo, sempre acho que é maravilhoso e logo depois, quando ele é editado, fico muito feliz. Mas um mês depois já vejo um monte de defeitos. Quando acabei Anatomia do Paraíso, achei o melhor que já escrevi. Quer dizer, tem uma ambição maior do que a dos outros. Não em termos de literatura, mas em termos de falar do mundo. Mesmo tendo muitos trechos com falhas, acho que é o melhor deles. Foi no que mais me dediquei e o que levou mais tempo para ficar pronto.
O Não Falei trata da ditadura, do golpe. Você diria que ainda existe pouca ficção tratando desse tema?
Fala-se isso. Eu não li o livro do Bernardo Kucinski (K – Relato de uma Busca), que dizem que é muito bom. Tem os que foram escritos na época da ditadura, que eram mais panfletários… Ficção tem muito pouco mesmo. E não sei por que se escreve pouco sobre isso, foi uma coisa que marcou demais quem viveu. Lá na Alemanha, onde meu livro foi lançado, eles queriam saber mais, porque eles têm a Segunda Guerra como o grande assunto. É muito diferente do nosso golpe, mas realmente não sei explicar por que se fala tão pouco nisso. Mais do que não querer saber, é como se não se quisesse manter na memória. Acho que se definiu muito rapidamente o lugar de cada um – os militares eram o mal, os guerrilheiros heróis. E tinha o pessoal do meio que éramos todos nós outros – é como se não tivesse mais o que falar, o que é mentira. Há muito o que falar. Acho que agora estamos tomando consciência. Na Argentina mataram-se 200 mil pessoas. Agora estamos entendendo uma ditadura como militar e civil Seria interessante ter ficção sobre isso.
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