Em busca do jornalismo perdido

Vocação - Jornalista "desde pequenininha" Graciela vai dividir mesa na FLIP com David Carr, do New York Times
Vocação – Jornalista “desde pequenininha” 

Aos 8 anos, Graciela já sabia o que queria ser. Para surpresa de seus pais, ele engenheiro, ela bioquímica, a pequena Mochkofsky tinha certeza de que dali a 12 anos estaria em uma redação. Tinha até criado sua primeira revistinha, a Club de los Castores, com recortes de outras revistas. Hoje, aos 43, formada na Columbia University, em Nova York, está desiludida com o velho Jornalismo, em busca de novas soluções, como o site que criou com o marido, El Puercuespín. Em parte por isso, publicou já seis livros, depois de passagens pelos jornais Página 12 e La Nación.

Colaboradora da revista Piauí e de outros veículos importantes, como a mítica The Paris Review, ela vem lançar Estação Terminal (e-galáxia), livro em que conta o trágico acidente de trem que matou 51 pessoas e deixou mais de 700 feridas em Buenos Aires, em fevereiro de 2012. E fez parte da mesa “Narradores do Poder”, na Festa Literária Internacional de Paraty. A seu lado, esteve o jornalista do New York Times David Carr, autor da autobiografia A Noite da Arma (Editora Record). Eles conversaram sobre as relações da imprensa e o poder, tema de um dos principais livros de Graciela, Pecado Original, sobre as disputas entre os Kirchner e o conglomerado de mídia do Clarín.

De Nova York, onde está morando provisoriamente, por conta de uma bolsa da biblioteca pública local, ela conversou com a gente. Entre muitas outras coisas, contou de seu novo projeto literário. Leia trechos:

Brasileiros – Por que escolheu esse tema? Sua família é judia?
Graciela Mochkofsky:
Meu pai é judeu, mas minha mãe é católica. E decidiram que quando tivessem filhos iriam deixar que eles escolhessem sua identidade religiosa. Minha mãe é religiosa, reza, vai à missa. Meu pai, como a maioria histórica dos judeus de Buenos Aires é secular, não crê em Deus. Mas quando eu tinha 9 anos e nasceu meu irmão menor, minha mãe teve complicações físicas e, por alguma razão, eu e ele fomos batizados e tivemos uma educação católica. Já meus irmãos maiores ficaram do lado do meu pai. Quando eu era adolescente, tentei converter a meu pai, porque as monjas me disseram que ele não iria ao céu. Era algo importante para mim e essa impossibilidade de conciliar minha mãe católica com meu pai judeu marcou minha identidade muito fortemente. Só percebi recentemente que essa talvez tenha sido minha motivação pessoal para escrever essa história. A ideia de que essas pessoas de comunidades católicas pobres tenham escolhido sua identidade religiosa, o que eu mesma não fiz, me parecia fascinante. É um fenômeno importante na América Latina, essa transformação religiosa nas últimas três décadas. Não há mais uma uniformidade católica, pois surgiram muitos grupos protestantes, judeus, muçulmanos e outros, alguns muito marginais – a não ser no caso das igrejas evangélicas e pentecostais no Brasil, que são muito fortes. Milhões de pessoas fizeram uma mudança que antes parecia impossível, e acho que isso deixa marcas no aspecto político e social dos países, sobretudo nas comunidades mais pobres.

Já que você tocou nesse assunto, o que acha do papa Francisco?
Em Nova York, há uma fascinação pelo papa Francisco. Minha experiência como argentina é que todo mundo me perguntava sobre Maradona ou Messi e agora me pergunta pelo papa Francisco (risos). Não sou especialista no assunto, mas o acompanhava antes como figura importante na política argentina – ele foi contrário aos Kirchner, que defendiam o casamento gay, por exemplo, e agora estamos surpresos que tenha dado uma guinada para a “esquerda”. Mas é claro que sua eleição tem a ver em parte com recuperar terreno na América Latina para o catolicismo, ainda que seja discutível se esse terreno foi mesmo perdido.

Já tinha vindo ao Brasil?
Fui ao Rio de Janeiro duas vezes no começo dos anos 1990 e fiquei encantada, queria mora lá. Fui à Bahia, em Morro de São Paulo, por duas semanas, em férias. Mas minha primeira ponte real com o Brasil, com o mundo intelectual e jornalístico, foi a colaboração com a Piauí

Seu livro Estação Terminal será lançado por aqui apenas em e-book. O que pensa desse suporte?
Gosto muito. A maioria dos livros que li este ano tenho no meu celular ou no kindle. Nos mudamos em agosto por um ano para Nova York. Seria impossível trazer nossos livros. E da outra vez que estivemos aqui, compramos tantos livros que demos vários de presente na hora de voltar. Acho genial que possamos levar nossa biblioteca a todo lugar. Acho que o livro em papel vai sobreviver como um objeto de apreciação dos leitores. É uma convivência saudável. E gosto da ideia que a primeira tradução de Estação Terminal seja em português e em e-book.

Por que escolheu o tema de Estação Terminal para um livro?
Eu tinha contrato para fazer um livro sobre a Justiça argentina, que acabei não fazendo. Seriam várias histórias mostrando como funciona – ou como não funciona – o sistema judicial na Argentina. Mas, enfim, eu tinha publicado um livro não fazia muito tempo (Pecado Original), meu filho tinha nascido meses antes e eu estava em casa quando aconteceu a tragédia; como boa parte do país, ficamos olhando pela televisão, chocados. O que aconteceu foi que o primeiro vagão se chocou no sistema de amortecimento da plataforma e o segundo vagão avançou para dentro do primeiro, como uma sanfona, onde muitas pessoas ficaram presas, umas em cima das outras. O resgate foi penoso, morreu meia centena de pessoas. Foi um desses episódios que simbolizam o que está ruim no país, a decadência na Argentina. Nós tínhamos a fantasia de um país que seria grande um dia, acreditávamos que tínhamos muitos talentos, sofríamos a síndrome de europeus exilados, ou seja, culpávamos sempre os políticos, o governo, mas nunca as pessoas. Isso mudou com a crise de 2001, quer dizer, continuamos culpando o governo, mas depois que as coisas melhoraram com o governo seguinte, restou ainda uma frustração – é uma interpretação minha –, uma amargura, a consciência, entre a classe média, de que na verdade o problema é a gente mesma, que a decadência em relação à história moderna da Argentina vem se acentuando ano após ano, em todas as áreas – social, política, cultural. A Argentina já teve a melhor rede de trens da América e uma das melhores do mundo e agora tem um sistema corrupto, que foi muito mal administrado ao longo das décadas. Nesse caso, as pessoas subiram no trem, o que deveria ser uma coisa banal, e terminaram morrendo ou perdendo uma perna, em um choque ridículo, que nunca foi bem explicado, pois ele ia muito devagar, a vinte por hora. Senti o dever, como jornalista, de mostrar para a sociedade argentina as péssimas condições em que viajavam os trabalhadores nos trens. Minha intenção era mostrar uma radiografia da Argentina de hoje que é muito dramática.

Polêmica - Ernestina Herrera, dona do Clarín, e seus filhos, personagens centrais de Pecado original
Polêmica – Ernestina Herrera, dona do Clarín, e seus filhos, personagens centrais de Pecado original

Estação Terminal tem dois lados distintos: um mais narrativo, com suspense e drama humano, que se aproxima mais do chamado Jornalismo Literário. E outro mais propriamente ligado ao Jornalismo de Denúncia. Até que ponto isso foi proposital? Você se sente dividida entre essas duas formas?
Meu desafio era unir um monte de fragmentos, de histórias pessoais, de história da Argentina, e de histórias específicas sobre o acidente sob um único arco narrativo. Não queria que fosse uma mera coleção de histórias, uma narrativa coral ou uma colagem, mas um livro com unidade. Na primeira parte, mostro as diferentes perspectivas da tragédia, em uma sequência que vai do exterior ao interior do trem. Começa com a funcionária de uma loja, que é uma das primeiras a ver a batida, e vai aumentando em profundidade e gravidade até Natália, que é a última sobrevivente a ser resgatada; ela tinha ficado presa debaixo de um amontoado de pessoas. E, finalmente, a família que perde o rapaz que ficou desaparecido por três dias, e a família que não consegue encontrar o pai. Ou seja, vai crescendo, do mais leve ao mais grave. A segunda parte, efetivamente, é uma narração histórica sobre o sistema ferroviário, que sempre foi um tema de debate importante na Argentina e outros países. São os fatos que explicam o que acontece na primeira parte. E depois tem a parte sobre os envolvidos, em que também quis dar um tom narrativo, ainda que se possa chamar de Jornalismo Investigativo; apresento vários personagens, como o engenheiro especialista que passa anos alertando para tragédia iminente ou o maquinista que bate o treme não consegue lembrar o que aconteceu.

Casal 21 - Graciela e seu marido Gabriel criaram o site independente El Puercoespín
Casal 21 – Graciela e seu marido Gabriel criaram o site independente El Puercoespín

Como foi a aproximação com as fontes primárias do livro? E como foram as reações depois que ele foi publicado? Acredita que o livro teve um papel decisivo para que se iniciassem melhorias no sistema ferroviário na Argentina?
Uma coisa que foi ao mesmo tempo uma vantagem e uma dificuldade é que tudo estava ainda muito fresco, então os relatos das vítimas e dos sobreviventes eram muito traumáticos. Fui aos hospitais e falei com gente que tinha perdido seus filhos ou seus pais e estava destroçada. E eu sou muito impressionável, não posso ver feridas, sangue, foi muito difícil para mim, até fisicamente, fazer essas entrevistas. Mas, claro, perto do que aquelas pessoas estavam passando, isso não tinha a menor importância. O livro foi muito bem recebido entre os familiares das vítimas e os sobreviventes, assim como na imprensa também, teve ótimas críticas. Acho que, após três meses de muita comoção e debate, serviu para dar uma explicação completa sobre o ocorrido e colocar o acidente no contexto histórico da Argentina. E acho que por isso ele foi elogiado, por ser uma narrativa clara e organizada dos fatos.

Sentiu-se pessoalmente envolvida? Teve a vontade de fazer algum tipo de justiça?
Sou jornalista há 24 anos e sempre tive bem claro qual é meu papel. Admiro vários jornalistas que juntam seu trabalho com a militância, como é o caso da israelense Amira Hass, que eu acho maravilhosa. Na verdade, sigo a verdade (risos). Acho que a importância do Jornalismo está em contar algumas verdades sobre o mundo, de modo que elas tenham em si força suficiente para que as pessoas façam algo. Não sinto que meu dever é fazer justiça, acho que há outras instâncias para isso. O trabalho do jornalista pode ajudar a abrir processos. Mas sobretudo acredito que minha função é contar a verdade da melhor maneira possível sobre temas que considero importantes e que são importantes para a sociedade. Para mim, ambicionar mais do que isso seria entrar demais no campo pessoal.

Por que decidiu ser jornalista? E como e quando soube que seria, de fato?
Minha família nunca percebeu nada, mas soube logo, quando era bem pequena. Eu tinha 8 anos, e fazia essa revista, Club de los Castores. Imagino que seja o que a gente chama de vocação. Ou então é falta de imaginação, pois eu nunca pensei em ser outra coisa além disso (risos).

O que lia na juventude? Que autores e livros foram marcantes para você?
São muitos, mas eu destacaria George Orwell, vários dos autores do novo Jornalismo norte-americano, de Truman Capote a Tom Wolfe, e também Janet Malcolm e Joan Didion. Para aprender a escrever, lia muito a revista New Yorker, mas a de 20 anos atrás, não a de agora; e isso combinado a Vargas Llosa, García Márquez e André Malraux, aquela da “ilha deserta”, A Condição Humana, um livro que me marcou moralmente. Na Argentina, há um grande escritor que foi muito importante para a minha geração de jornalistas, que é o Rodolfo Walsh; seus livros juntam alta qualidade literária e compromisso político. Também teve uma escritora que eu sempre quis conhecer e morreu faz alguns anos, que se chama Gitta Sereny, e escreveu muito sobre os nazistas, especialmente uma biografia de Albert Speer; seus livros foram muito importantes para mim.

No prólogo de Timerman (seu livro mais bem-sucedido, em que narra a trajetória de um dos maiores jornalistas argentinos), você diz que se desencantou cedo com o Jornalismo. Quer falar mais sobre isso?
Muitos jornalistas depois de alguns anos, ou mesmo as pessoas em geral, perdem um pouco o idealismo ao longo da vida. Quando virei jornalista de política e ao mesmo tempo escrevia o livro sobre o Timerman, vivi na carne a relação entre a imprensa e o poder. Eu tinha de conciliar os fatos políticos com os interesses do jornal e garantir que aquilo que acreditava ser a verdade seria publicado, ou seja, eu conseguia as informações e depois tinha de discutir com meus editores para que elas não fossem distorcidas de acordo com a linha editorial do jornal. Era como viver no passado e no presente ao mesmo tempo, porque isso coincidiu com minha investigação de como havia se formado as duas ou três gerações de jornalistas anteriores à minha, e como essas regras da relação entre a imprensa e o poder haviam sido criadas. E o que eu percebi é que é muito comum que os jornalistas, ao subirem na carreira, caíam no cinismo. Além disso, do final dos anos 1990 para cá, houve muita corrupção na imprensa . À medida que os salários baixavam, ou que ficava frustrante escrever, ou que os artigos eram censurados, muitos perderam o ideal da verdade e mesmo a honestidade. Até algumas pessoas de que eu gostava muito e acreditava serem como eu caíram nessa, tomaram a opção de cobrar propinas de políticos, etc. Ao mesmo tempo, me aferrei à ideia de que se eu tinha uma matéria que podia provar ser verdadeira, ela inevitavelmente seria publicada e inevitavelmente teria um efeito social. Mas não é sempre assim. Há outros interesses, há muitos obstáculos políticos e econômicos, que acabam regendo o que se publica ou não se publica, e sobre isso eu não tinha nenhum controle. Houve um período de grandes jornalistas e excelentes jornais na Argentina, mas isso acabou. Foram janelas que se abriram e depois se fecharam. Minha geração viveu em algumas dessas janelas. No final dos anos 1990, trabalhei no Página 12, um jornal bastante combativo que combinava o Jornalismo opinativo, de raiz europeia, e o novo Jornalismo norte-americano, e que me deu uma formação extraordinária. Depois, passei para um jornal de muita tradição, que era o La Nación, que naquele momento, final dos 1990 e começo dos 2000, dava muita liberdade, tudo o que eu escrevia era publicado e tinha grande repercussão. Quando a última janela se fechou, me dei conta de que tive muita sorte. Acho que é a isso que eu me refiro no prefácio.

Você tem uma revista eletrônica, a Puercoespín. Conta um pouco dessa experiência.
Desde 2003, eu e meu marido, Gabriel Pasquini, que também é jornalista e escritor, além de meu editor, tínhamos abandonado as redações, frustrados com o panorama do jornalismo argentino. Decidimos, então, tentar algo em que nos reconhecêssemos. Foi assim que criamos o puercoespín, que agregava os melhores artigos que líamos no mundo, os quais traduzíamos para o espanhol. Também aproveitávamos uma rede de amigos jornalistas e fotógrafos espalhados pelo mundo para publicar suas histórias, além das nossas próprias. Começou como um experimento, mas foi logo adquirindo uma identidade clara, com textos ou posts longos, de histórias do mundo que não se encontrava em outros lugares. Mas quando tivemos um filho, vimos que era impossível continuar, pois era preciso pagar as contas. Lançamos uma campanha de assinaturas, mas o governo limitou muito o poder de compra por cartão de crédito e isso dificultou bastante. Então, decidimos deixá-lo em pausa. Gosto de pensar que em quatro anos o puercoespín virou uma referência. De qualquer forma, os cerca de 2.500 posts estão lá para quem quiser ler.

Como foi essa passagem de jornalista para escritora?
Quando comecei a escrever Timerman, era um momento que não conseguia fazer nada no jornal, estava muito frustrada. E acho que todo jornalista tem essa ambição de escrever algo que perdure. O livro dá uma liberdade estilística, profissional, de investigação, que é mais difícil de encontrar na mídia; é possível contar uma história completa, com reflexões, contexto. Mas a verdade é que sempre que vou escrever um livro sofro muito, pois tenho de passar muitas horas escravizada ao computador, olhando a tela em branco. Não é algo de que eu goste muito, sou mais do tipo repórter. Toda vez que termino um livro digo que será o último. Mas aí acabo fazendo outro, então acho que de alguma forma isso funciona para mim. É minha maneira de seguir com minha vocação.

Imprensa em poder - Nesses livros de enorme repercussão na Argentina, Graciela foi a fundo na relação entre mídia e governo. como a longa batalha entre os Kirchner e o grupo Clarín
Imprensa em poder – Nesses livros de enorme repercussão na Argentina, Graciela foi a fundo na relação entre mídia e governo. como a longa batalha entre os Kirchner e o grupo Clarín

Fale um pouco de seus outros livros. Fiquei especialmente curioso com as aventuras de seu tio-avô, contadas em Tío Boris – Un Heróe Olvidado de la Guerra Civil Española.
Essa é uma história que teve um lado muito pessoal. Descobri que o irmão mais novo do meu avô tinha sido militante comunista e comandante de uma brigada na Guerra Civil Espanhola. Comecei a averiguar, até porque a família do meu pai não é nada de esquerda, então nunca tinha ouvido falar do tio Boris. Foi a única vez que não pude reconstruir a história inteira, pois ele já tinha morrido e as pessoas que estavam vivas tinham perdido a memória. Então me dei conta de que seria um ensaio narrativo sobre a memória, de minha família e de um país que mudou muito. E também descobri que esse meu tio-avô e o avô do meu marido tinham sido presos juntos como comunistas. Então falei: tenho que escrever esse livro! E me parece que é um livro original, pela sua estrutura, que é ao mesmo tempo um ensaio narrativo sobre a memória e o heroísmo e a história de uma geração de idealismo político na Argentina, algo que me interessa mostrar nesse momento de cinismo em que vivemos.

Seus livros têm a peculiaridade de, mesmo tratando de assuntos específicos da história argentina, serem universais. Você pensa no leitor quando escreve?
Sim, sempre penso que o livro tem de ser compreendido e apreciado por alguém que não sabe nada sobre a história. Por alguém que seja um marciano. Quer dizer, um marciano seria muito complicado, pois eu teria de explicar muito mais coisas (risos). Penso também que o livro tem de ter um sentido em si mesmo. Como na literatura. Às vezes funciona, às vezes não. Tomara que os meus funcionem.

Leia um trecho de sua obra:

CÂMERA LENTA

Tragédia - 51 mortos e mais de 700 feridos no acidente que traumatizou argentinos
Tragédia – 51 mortos e mais de 700 feridos no acidente que traumatizou argentinos

Fabio sentiu que também voava, para frente, sempre em câmera lenta, impulsionado por uma massa impossível. Atravessou a ligação sanfonada que unia os vagões e entrou pelo ar no segundo vagão. Caiu no piso na altura da primeira porta, dez metros mais para frente. Sobre ele caíram outros passageiros voadores.

Quando a massa se deteve, muitos pés correram por cima dele, pisaram sua perna e suas costas. Gritavam e corriam, desesperados.


“Um atentado”, conseguiu pensar.


Viu que a porta havia permanecido fechada e não permitia escapatória. Buscou com o olhar e encontrou outra que havia saído do trilho superior, deixando uma abertura pela qual alguns já estavam escapando.


Seu cunhado o colocou de pé e saíram para a plataforma. Caminharam em direção ao hall.


– Tem um monte de mortos aqui. É terrível – disse Fabio.


Lembrou que era médico e sentiu a obrigação de ficar para ajudar – ou, melhor dizendo, a culpa por não ter ficado: ele, que havia rejeitado todas as vantagens devido aos seus princípios, já estava no hall. Pensou com remorso que havia pessoas em estado grave nos vagões, nas plataformas, e que ele estava quase inteiro e caminhando com suas próprias pernas.


Então sentiu uma dor intensa no pescoço e seus olhos se encheram de estrelinhas. Sentou em uma escadaria e começou a suar.


Sua pressão baixava, ficou enjoado.


– Estou entrando em choque – disse.


Resistiu a usar uma ambulância porque outros precisavam mais dela, mas por fim aceitou compartilhá-la. Viajou até o hospital Durand ao lado de um rapaz que havia sido retirado debaixo de uma montanha de gente; tinha o esterno quase grudado na coluna e chorava e se lamentava:


– Ahhhh. Ahhhh. Ahhhh.


Chegaram a um hospital abarrotado.


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