Livros confrontam nossa relação com o futuro a partir da cultura da internet

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Uma das desvantagens do mundo de transformações por segundo em que vivemos é que são tantas as mudanças, em tantas áreas diferentes, que a ficção científica, antes o farol das revoluções tecnológicas do século 20, agora tem de correr atrás para não ficar defasada. A forma como a internet entrou em nossa rotina, por exemplo, caducou centenas de obras que não cogitaram um século 21 como tendo acesso instantâneo, a partir de qualquer aparelho, ao maior banco de dados da história, que também tem afetado nosso consumo de mídia. TV, rádio, jornais e revistas já padecem ao rascunho multimídia que ainda são os sites de internet, uma plataforma que ainda engatinha para encontrar sua excelência narrativa, entre sistemas operacionais e navegadores diferentes. E isso levando em conta apenas o futuro digital, traçado a partir da popularização da internet – sem contar outros futuros possíveis, em áreas bem diferentes como a indústria farmacêutica, a engenharia genética, a robótica, a nanotecnologia ou a biotecnologia.

Mesmo assim, um dos poucos livros a cogitar essa realidade online – Neuromancer, de William Gibson –, inaugurou há 30 anos o subgênero cyberpunk e escapou desse envelhecimento instantâneo. “O fato de que leitores do século 21, vivendo em nações como o Brasil, ainda estejam dispostos a ler um romance de ficção científica anterior ao telefone celular e em que aparelhos de fax ainda estão presentes, me encanta”, escreve na introdução da edição de aniversário do livro, relançado no Brasil pela Editora Aleph. “Para mim, Neuromancer nunca foi sobre ‘como o futuro seria’, mas sobre o que fazemos, como espécie, com as ideias que temos a respeito do futuro. É um romance sobre como a tecnologia nos modifica ou fracassa em suas tentativas de nos modificar, geralmente de maneiras que os desenvolvedores dessa tecnologia sequer são capazes de antecipar.”

Hoje, Microsoft e Apple, empresas responsáveis pela disseminação da web na última década do século passado, ao personalizar o computador no início da década de 1980, já são velhas conhecidas. Google e Facebook, no entanto, ainda são relativamente jovens: não têm nem 20 anos de idade (o Facebook completou 10 neste ano), mas já se embrenharam assustadoramente em diferentes camadas de nossas vidas. E por mais que o século 21 nos tenha trazido outras marcas à rotina – Dropbox, Samsung, eBay, Netflix, Amazon, Twitter e PayPal são outras que nos vigiam em diferentes áreas –, nenhuma delas chega perto da penetração e onipresença do site de buscas criado pela dupla Sergey Brin e Larry Page e pela rede social criada por Mark Zuckerberg.

Google e Facebook fo­­­ram aceitos ao oferecerem serviços gratuitos de forma universal. A partir dessa oferta, as duas empresas foram reunindo comunidades ao redor de seus algoritmos que, aos poucos, traçavam o perfil individual de seus usuários para, finalmente, mostrar propaganda personalizada para cada um deles. As duas empresas criaram seus próprios sistemas de anúncios que ligavam o consumidor a outros clientes, aposentando veículos de comunicação e agências de publicidade para dominar a propaganda digital. Resta saber o que pode aparecer para superar essa hegemonia digital. É o que nos propõe Dave Eggers em seu novo livro, O Círculo, recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras.

O título do livro também é o nome dessa nova empresa que conseguiu ultrapassar Google e Facebook na forma como foi adotada por todo o planeta. O Círculo consegue reunir todas as plataformas digitais do mundo (inclusive Google e Facebook) em num mesmo ambiente, de forma que todas as pessoas do mundo precisam estar nessa nova rede social se quiserem participar de qualquer atividade online. A conta no Círculo funciona como uma identidade digital e a rede pede apenas que você abra mão do seu anonimato para utilizá-la. A rede foi inventada porque um de seus fundadores estava farto de ter de decorar senhas e para isso criou uma plataforma de identidade única, chamada TruYou, que ainda matava trolls e outras espécies de incômodos online. Foi a fagulha que deu origem não apenas ao interesse do público em geral, mas também à expansão da empresa rumo a outras áreas da sociedade em que a identidade social fosse exigida.

Conhecemos o Círculo pelos olhos de uma novata, Mae, que é indicada para entrar no Círculo pelas mãos de uma amiga de faculdade, Annie. Esta é integrante da Gangue dos 40 (referência à Camarilha dos Quatro, do governo de Mao na China), conselho da empresa que ajuda seus fundadores a traçar os rumos de expansão da marca. Como os outros integrantes da Gangue, Annie é jovem, decidida e obcecada, um perfil quase caricato dos executivos pós-modernos. Ela convida Mae para o Círculo quase numa tentativa de manter seu vínculo com o passado emocional que aos poucos vem perdendo. Annie mostra cada atividade desenvolvida pela empresa para Mae e para o leitor, bem como seu campus paradisíaco, seus funcionários satisfeitos e saudáveis e seus fundadores, os Três Homens Sábios.

Esses homens são paródias de figuras que vemos diariamente entre o noticiário de negócios, tecnologia e relações internacionais. Eamon Bailey é o adulto entusiasta, padrinho e profeta daquele ambiente mágico em que a tecnologia resolve todos os problemas, o rosto público agradável que sempre anuncia para o resto do mundo as novidades da empresa. Tom Stenton é o CEO obstinado, disposto a transformar tudo em dinheiro, o capitalista engravatado que faz o mundo perfeito de Bailey funcionar, que tem um estranho hobby relacionado a espécies raras de animais. Ty Gospodinov é o gênio juvenil que bolou todo aquele organismo digital e hoje vive recluso, aparecendo apenas em transmissões em vídeo.

Pelas páginas do livro, vamos entrando nesse aparente paraíso digital e aos poucos percebemos que o enorme círculo eletrônico está mais para uma ilusão destrutiva. Eggers desconstrói o Grande Irmão de George Orwell através das distrações propostas por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo e revela um Círculo que mais lembra aqueles visitados por Dante na ida ao Inferno em sua Divina Comédia. A saga de Mae desce, inclusive, aos subterrâneos onde antevê um futuro nada amistoso para o resto do mundo – enquanto sua amiga Annie perde-se dentro do delírio de onipresença da empresa que antes comemorava.

É uma visão pessimista e amarga do mundo digital, especificamente da forma como abrimos mão de nossas liberdades e individualidades para alimentarmos enormes máquinas de invasão de privacidade. Eggers foi criticado por desenhar uma caricatura nefasta do Vale do Silício, mas a crítica só reforça a carapuça de quem é criticado.

Projetando um futuro im­­preciso e breve, sem precisar datas para o Círculo para não perder a validade em poucos anos, Eggers não está falando de uma realidade que virá. Ele está falando de nossos dias, repetindo o velho clichê de que a ficção científica finge antecipar o futuro para dissecar o presente. Se não parece ficção científica é porque o século 21 parece ser o da não-ficção científica – carros que se dirigem sozinhos, dinheiro eletrônico, ciberguerra e a vigilância online são parte do noticiário atual, não de previsões futuristas. E se a realidade digital de nossos dias não lhe causa um mínimo mal-estar pessimista é porque você não está olhando direito.


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