No princípio era o sexo

Eliane Robert Moraes - Foto: Reprodução
Eliane Robert Moraes – Foto: Reprodução

A voz é suave, as maneiras gentis, a postura elegante. Nada faz pensar que sua cabeça é povoada por orgias, perversões e banhos de sangue. A não ser, talvez, pelo humor jovial, de alguém que tem uma curiosidade gigante. Doutora em Filosofia pela USP e professora de Estética e Literatura na PUC, Elaine Robert Moraes é a maior especialista brasileira na obra do Marquês de Sade, morto há 200 anos. Seu livro Sade, a Felicidade Libertina (Iluminuras), acaba de ganhar uma segunda edição. “Muitas vezes a gente imagina aquilo que a gente não pode mesmo fazer. E é por isso que eu adoro Sade. Ele diz assim: ‘Os libertinos se reuniram, cada um tomou cem garrafas de vinho e sangue humano, e depois foram para uma orgia com 400 pessoas’. E a gente não consegue fazer isso sem cair em coma alcoólico (risos). Então, a imaginação é uma possibilidade que a gente tem para superar as tristes limitações empíricas.”

Também profunda conhecedora dos escritos “obscenos” de Georges Bataille e Hilda Hilst, passou os últimos dez anos preparando a primeira grande Antologia da Poesia Erótica Brasileira. Como princípio norteador, considera que “o erotismo e a pornografia são concepções de mundo em que se pensa tudo a partir do sexo”. O inspirador da empreitada foi o poeta e tradutor José Paulo Paes (1926-1998), grande amigo de Eliane e autor, ele mesmo, de uma antologia de poesia erótica traduzida. “Ele vivia me dando umas cutucadinhas: e aqui no Brasil? Aí, me passava uns textos, umas edições fac-símiles.” As cutucadas deram certo. Eliane começou a visitar bibliotecas, acervos pessoais e instituições pelo país afora. “Virei meio detetive, encontrei muita coisa no Nordeste. Descobri um mundo e sabia que não ia mais sair dele.”

Em sua pesquisa, chegou a levantar cerca de 1500 poemas, dos quais selecionou um pouco menos de 300, que vão do século 17 aos dias de hoje. Alguns são de poetas anônimos, publicados em jornais ou preservados na cultura popular. “São só uma pontinha do iceberg, um menu degustação. Eu pretendo organizar um outro livro só sobre esses textos. Mário de Andrade fez um trabalho incrível de levantamento desses poetas anônimos, mas que ainda é mal organizado. Ou seja, é um trabalho a ser feito.”

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O autor de Macunaíma foi a referência fundamental para a Antologia. Considerava a pornografia como “uma das expressões privilegiadas do que chamava de ente nacional”. Dizia, bem-humorado: “Se três brasileiros estão juntos, estão falando porcaria”. Eliane concorda, com um sorriso: “Acho que a gente tem mesmo uma fala solta, maliciosa. Nossa tendência está para uma erótica mais cômica, mais brincalhona, que vai do burlesco ao escatológico”. Esse lado engraçado, que na coletânea convive bem com outras formas de abordar o erotismo, místicas, elegíacas, existenciais, ajudou a pesquisadora: “Eu fiz esse livro chorando de rir muitas vezes e isso foi bem legal na minha vida. Ele me acompanhou em momentos muito duros, de muitas perdas, tinha horas que era tão bom voltar para ele e ver, por exemplo, as paródias em cima do Gonçalves Dias, o poeta nacional, que foi vítima de todo mundo.”

Boas descobertas surgiram no processo. “Encontrei autores muito legais que escreveram fundamentalmente só literatura erótica de alta qualidade. O Moniz Barreto, da Bahia, do século 19, e o Moysés Sesyom, do século 20, por exemplo. Outra descoberta bacana é que todos nossos poetas escreveram literatura erótica. Eles eram danados. Tinham todo um encanto com putaria (risos).”

Eliane diz que teve sorte com os direitos autorais. A exceção foi Manuel Bandeira, cujos herdeiros “foram contatados de todas maneiras mas nunca responderam”, e Oswald de Andrade: “Pediram uma fortuna, que nenhuma editora aceitaria”. A ausência do Bandeira doeu mais. “Ele conhecia muito de tudo isso. A biblioteca dele na Academia Brasileira de Letras é cheia de livros de libertinos do século 18. O Bandeira ficava incitando Mário de Andrade a colocar passagens eróticas no Macunaíma. Aí, o Mário inventou uma sequência de posições sexuais na rede, mas como foi considerado muito obsceno, ele cortou na segunda edição. Isso que ele chamava de as três f… na rede, é genial e muito divertido, são posições super estrambólicas, completamente imaginativas! Ele se defendia dizendo que o Macunaíma não era imoral, mas desmoral!”

Os “imoraes”
Eliane vai participar de duas mesas na Flip. Em uma delas, na abertura, ela vai falar justamente de Mário de Andrade, o homenageado da festa, ao lado de Beatriz Sarlo (ver página 107) e Eduardo Jardim. Em outra, bem intitulada Os Imoraes, vai dividir impressões sobre erotismo literário com Reinaldo de Moraes, autor do Pornopopeia. “Eu estava com medo, afinal ele é um escritor, objeto de estudo e tal, e ele, por sua vez, pensou, ai, uma universitária, não sei o quê. Daí, nós fomos almoçar juntos e ficamos amigos. Gosto demais da escrita dele, é um cara genial. Depois da Hilda foi o autor nacional que me abalou.”
A história se fecha, de forma surpreendente, com o velho e bom Marquês: “A última coisa que eu produzi sobre Sade é um texto que vai sair numa revista portuguesa. Chama-se ‘Reinaldo avec Sade’.” Eliane descobriu uma conexão insuspeitada entre um conto de Reinaldo, presente na coletânea Umidade, e o afamado 120 Dias de Sodoma, que Sade escreveu em 1785, quando preso na Bastilha. A julgar pelo tema em comum dos dois textos, é capaz de a Tenda dos Autores vir abaixo durante a mesa dos Imoraes.


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