Primeiras edições

Karl Marx - Foto: Wikimedia
Karl Marx – Foto: Wikimedia

Um exemplar da primeira edição do Manifesto Comunista, leiloado em 2001, custou US$ 87 mil. Quando li a notícia pensei na contradição entre o preço da obra e o intuito do autor ao escrevê-la. Marx se tornava uma mercadoria.

Quando Marx estabeleceu os circuitos de recepção ativa da literatura socialista, ele mostrou como os alemães incorporaram a literatura revolucionária francesa: pela tradução. Mas a tradução era feita como um palimpsesto. A filosofia alemã se reescrevia por cima do original francês e emasculava aquelas obras políticas que eram revolucionárias porque correspondiam às exigências sociais e econômicas francesas. O verbo escrever ou traduzir não tinha ali o significado denotativo. Os teóricos alemães reescreviam quando liam. Marx criticava assim o “socialismo verdadeiro ou alemão” no Manifesto Comunista e mostrava como as obras importadas eram “reescritas” na tradução para o mercado importador. 

Nosso caso é menos grandioso. O comprador da raridade talvez fosse apenas um investidor…

A literatura outrora insolente para a burguesia já foi mercantilizada. Sade, antes proibido e lançado em edições descuidadas, integrou a prestigiosa coleção Pléiade e fez-se um clássico francês tanto quanto outro iconoclasta: Rimbaud. As Memórias de Casanova mais cedo se mostraram pelo que eram: um excitante retrato da aristocracia do século 18. Embora escrita em francês, a sua primeira edição foi em alemão!

No entanto, toda obra pour épater le bourgeois só abala a moral vigente na primeira vez. Na segunda, ela é absorvida e seus autores são expostos nas galerias de arte.

Certa ocasião, confesso, eu mesmo fui a um sebo no centro de São Paulo para encontrar a minha raridade. Olhei detidamente a estante de marxismo. Sim, havia uma! Quem sabe encontraria a primeira edição brasileira do Manifesto Comunista. Não havia nada. Decerto o bibliófilo Dainis Karepovs já passou por aqui, resignei-me. Ou quem sabe o Francisco Campos, aquele dirigente petista com o estranho hábito de visitar sebos.

Dirigi-me, em seguida, a um jantar com camaradas. Eis que um indizível adversário me mostra a primeira edição francesa de O Capital. “Preço de banana”, ele regurgitou. “Encontrei no sebo do Messias hoje”, riu-se com malícia.

Mas como?, pensei eu. Lá eu estivera e nada vira. Incontinenti, ofereci dez vezes o valor que ele havia pago. Ele negaceou. Precisava de mais dinheiro para ir a Paris. Mas aquilo já o ajudava. Outro comensal, de coração amolecido, tomou-me a frente e ofereceu 30 vezes o valor inicial. O sortudo achara a sorte grande. Queria um empréstimo e deixaria a obra como caução. Para mim, aquela perda era infinita.

 (…) toda obra pour épater le bourgeois só abala a moral vigente na primeira vez. Na segunda, ela é absorvida e seus autores são expostos nas galerias de arte

Consolei-me rápido, mas sempre acompanhado daquela tristeza de algum personagem de Italo Svevo. Eu já havia visto uma edição daquelas na Biblioteca de Edgard Carone. A edição era uma contrafação, sem a chancela do editor Maurice Lachatre. Ainda assim, eu a queria.

*Professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo


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