Quem foi Dorca?

Detalhe da capa de Meu ABC, da Editora Melhoramentos, com ilustração de Dorca. Foto: Reprodução / Melhoramentos
Detalhe da capa de Meu ABC, da Editora Melhoramentos, com ilustração de Dorca. Foto: Reprodução / Melhoramentos

O primeiro encontro com Dorca se deu em 2012. Foi Ubiratan Machado quem me apresentou a esta notável artista. A bem da verdade, naquela época, a perspectiva de estudar os ilustradores e capistas de livros brasileiros não me seduziu. Mas o encontro ficou registrado. Mesmo porque não se pode ignorar qualquer referência do Ubiratan, um dos maiores conhecedores da história editorial brasileira. Figura tão preciosa quanto a de Claudio Giordano, o Quixote paulistano que tem sempre um bom livro à mão.

Dorca ficou ali, adormecida, em um artigo da revista Livro. Não faz muito tempo, a pergunta “Quem foi Dorca?” voltou à tona, com força, resoluta. Então, eu me dobrei aos seus traços, às suas cores, à sua delicadeza. Via Dorca por todas as partes, assinada em versalete, sem grandes floreios, ao pé do livro, em paralelo com a lombada.

No romance A Rua, de Ann Petry, a ilustração da capa apresenta uma dessas imagens dignas de um bom filme noir. Um observador registra o movimento das pessoas em um bar de esquina. Ele olha tudo do alto de sua janela, mas ninguém o vê. Os homens usam chapéus, enquanto as mulheres ostentam vestidos justos com seus corpos esguios. Mas elas apenas cruzam a calçada, não parecem compartilhar do mesmo ambiente masculino. Os personagens são iluminados pela luz do bar, o que aumenta o clima de mistério e a dramaticidade do desenho. A história se passa no Harlem, onde uma mulher jovem, negra e mãe solteira vive só, em seu apartamento. O livro fez um sucesso estrondoso nos EUA! Publicado em 1946, atingiu mais de um milhão de cópias! A edição brasileira saiu em 1947, pela Companhia Editora Nacional. A autora, ela mesma, foi uma ativista negra, nascida em Connecticut, que faleceu em 1997.

Mas Dorca foi artista de talentos múltiplos. Podemos ver seus traços delicados, femininos, nas aquarelas pintadas para Paralelamente a Paul Verlaine, de Guilherme de Almeida, essa bela edição publicada pela Martins. Aliás, é nesse ponto que Dorca se revela mais humana. Quis o destino que sua meia identidade nos fosse revelada há alguns dias, por José Fernando de Barros Martins, filho do grande editor paulista que praticamente dominou a cena intelectual da cidade nos anos de 1940-50. Dorca era ilustradora da casa, onde fez muitos livros. Após a entrada de Clóvis Graciano para a seção artística da editora, ela saiu de cena. No entanto, a imagem de uma mulher formal, que usava chapéu, ficou marcada na memória do menino de 7 anos que a encontrara na editora do pai.

Quem foi Dorca? Mais uma pista, agora enviada pelo colecionador Luís Pedro Pio. Dorothea Gaspary (ou Capary?). Nasceu em 1910, em algum país da Europa e atuou no meio artístico brasileiro no pós-Segunda Guerra. Já imagino Dorca heroicamente fugindo à sanha feroz do nazismo, como Paulo Rónai e tantos outros artistas que enriqueceram a cena cultural brasileira naqueles tempos. Mas, nesse ponto, tudo não passa de imaginação. Ou de história indiciária, diria meu aluno.

* Professora da USP e autora de, entre outros, O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista, Prêmio Jabuti, 2012. Para ler mais, acesse 


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