Os habitués já sabem: há dois anos, as terças-feiras são reservadas à música instrumental, graças ao Terça Open-House, projeto gratuito criado pelo produtor Paulo Papaleo, que semanalmente leva ao palco da casa bandas autorais vindas de todos os cantos do País. Enquanto ele aquece a pista do clube, com jazz, funk e ritmos afro-latinos, vamos até o camarim para bater um papo com o trio.
Nesta noite, em que o Otis apresentará seu mais recente trabalho, o álbum Vida Fácil, João, Luiz e Tubarão também recebem cinco colaboradores regulares. Intitulado Otis Trio 8, o grupo é complementado por Amílcar Rodrigues (trompete), André Calixto (sax tenor), Richard Fermino (trombone e clarone), Beto Montag (vibrafone) e Bio Donato (sax barítono). O mesmo octeto foi reunido em estúdio para, em um único take, registrar as duas suítes de Vida Fácil, o tema homônimo, com mais de 33 minutos, e Mandala, com quase 20.
A extensão das faixas justifica-se pelo fato de elas terem sido compostas como trilha sonora para um longa-metragem. Não um filme qualquer. Mas um dos títulos da fase britânica de Alfred Hitchcock. Rodado em 1928, mudo, Vida Fácil (Easy Virtue, no original) foi um dos trabalhos exibidos em uma mostra que celebrou o centenário de nascimento do cineasta, em evento promovido pela unidade Santana do Sesc de São Paulo.
Na ocasião, em março de 2015, o Otis Trio foi convidado por Romulo Alexis, programador cultural do Sesc, que também é músico (trompetista), para fazer a trilha sonora ao vivo durante a projeção do filme. Convite irrecusável. Afinal, a extensão e as nuances narrativas da película em preto e branco possibilitariam ao grupo exercitar as longas sessões de improviso que fazem do Otis um dos nomes de ponta do jazz contemporâneo brasileiro.
“O Tuba (derivação do apelido Tubarão) sempre fala que tivemos de assumir nossa identidade para atingir maturidade. O Vida Fácil acabou sendo uma síntese dessa história. Nele, existe o be bop, o free jazz, o noise, o modal. Tudo que a gente vivenciou até aqui está reunido nessas duas suítes. É uma espécie de retrato do Otis”, diz Galvão. Curiosamente, a banda nasceu de forma inesperada. “Nosso intuito nem era montar um trio. Os ensaios eram encontros despretensiosos motivados pelo estudo. Fizemos uma lista de standards, que incluía temas como Caravan (de Juan Tizol e Duke Ellington), Moanin’ (de Bobby Timmons), Mr. PC e Impressions (de John Coltrane)”, complementa.
Segundo álbum do combo, Vida Fácil sucede 74 Club, título que presta homenagem à pequena casa de shows de Santo André que acolheu o grupo em sua fase inaugural. Gravado em São Paulo, o trabalho reúne nove temas autorais e foi lançado em 2014 pelo selo britânico Far Out Recordings, com recepção calorosa da imprensa local. Segundo Russ Slater, crítico da revista Songlines Magazine, 74 Club é um dos títulos essenciais produzidos naquele ano e a banda é uma “injeção sub-reptícia de vida no jazz brasileiro”.
Com quase dez anos de estrada e apenas dois álbuns, fica a dúvida: seria o Otis Trio uma banda com pouca afeição aos estúdios? João explica. “Demoramos para lançar o primeiro disco porque foi difícil achar um esquema decente de captação. Na maioria dos estúdios tudo funciona de modo digital, com gravação instrumento por instrumento, e sempre achamos melhor gravar tudo ao vivo.” Tuba reitera a constatação de que, para o trio, com ou sem público, o fundamental é tocar. “O lance do improviso fez com que, em vez de estudar outros temas, passássemos a explorar os nossos”, defende o baterista. “Acho que o novo disco é também um belo retrato da nossa amizade. O Beto, que volta e meia toca com a gente desde 2010, fala que a relação entre os músicos é diferente no Otis. Tem muitas bandas que funcionam como uma empresa”, complementa João, no momento em que Beto e Amílcar surgem no camarim.
Questionados sobre o que os fez colaborar com os rapazes de Santo André, eles, que moram em São Paulo, defendem que a aversão do trio ao puritanismo musical foi determinante. “Demorei para sacar o lance do free jazz. Tanto que os solos das primeiras vezes que eu toquei com eles não chegam a ser caretas, mas o tempo todo foram pensados na tonalidade. Esse ambiente provocativo é o que move o Otis Trio. Os arranjos são executados em uma estrutura de liberdade absoluta”, diz Beto. Para muitos desinformados e não iniciados no gênero, free jazz é sinônimo de cacofonia gratuita. Ledo engano, como explica Amílcar. “O Otis tem essa coisa do jazz que é quase blues, algo que tem a ver com artistas como Ornette Coleman, pioneiro do free. No Otis, mesmo que os solos sejam livres, eles têm sempre a linguagem do jazz envolvida. Os caras também têm uma pegada rock n’ roll, uma intenção muito forte, algo que parece próprio da música feita no ABC, desde os anos 1980.”
Com a chegada de André, Richard e Bio, o octeto está pronto para subir ao palco. Casa cheia, eles dão início a um ritual de transe, que começa com o ostinato hipnótico de uma linha de baixo perseguida por João. Pouco a pouco, novos elementos vão transformando a suíte Vida Fácil em uma polifonia impactante. Ao longo de mais de uma hora, os oito músicos alternam solos urgentes e passeiam pelo be bop, pelo hard bop até chegar aos ataques frenéticos do livre improviso. Na primeira fila, um grupo de jovens sentados observa tudo com olhar fixo. Duas garotas, que aparentam no máximo 20 anos, tentam se aproximar do espaço privilegiado. Uma delas questiona: “Que som é esse?”A outra diz: “Isso é free jazz”. Sorridente, a amiga conclui “Então isso que é free jazz… Eu gosto de free jazz!” Apinhadas, de pernas cruzadas, diante da borda do palco, elas fecham os olhos e começam a girar as cabeças na cadência dos músicos, enquanto equilibram garrafas de cerveja long-neck. No excercício de seu melhor predicado, tocar ao vivo, a vida, mais uma noite,
é fácil para o Otis Trio e seus chapas.
Em tempo: o grupo apresenta-se em São Paulo neste sábado (20), na casa noturna Superloft (saiba mais detalhes).
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