A historiografia da música brasileira acaba de ganhar capítulo editorial sem precedente. Empenhado, havia 18 anos, em uma pesquisa ambiciosa e complexa, o jornalista político Franklin Martins publica, agora, em três volumes, o resultado de um trabalho que já nasce com status de referência para quem se dispõe, ou se dispuser, a entender como, desde o nascimento da indústria fonográfica no País, em 1902, a música popular retratou quase todas as transformações políticas do Brasil República.
O trabalho soma mais de 1,5 mil páginas e ganhou o sugestivo título Quem foi que Inventou o Brasil? – tributário ao verso inicial da marchinha História do Brasil, de Lamartine Babo (ouça o registro de Almirante). Os três volumes, que também trazem o intertítulo A Música Popular Canta a História da República, são divididos por critério cronológico: o primeiro vai de 1902 ao golpe civil-militar de 1964; o segundo aborda a produção popular à sombra da ditadura até a chegada da redemocratização, em 1985; por fim, é composto um retrato do cancioneiro lançado a partir da reabertura política até 2002.
Ao compilar as mais de 1,1 mil composições destacadas nos três livros, Franklin constrói uma rede de informações que evidencia o quanto esses cem anos – marcados por um sem-número de transformações sociais e comportamentais, conflitos civis e militares, episódios históricos, duas guerras mundiais, e, sobretudo, grandes eventos da política nacional – foram também fonte de inspiração para compositores dos mais diferentes gêneros musicais, vindos das mais diversas regiões do País.
Os dois primeiros terços de Quem Foi Que Inventou o Brasil? já estão disponíveis em livrarias de todo o País. No prelo, o derradeiro deve ser lançado na primeira quinzena de agosto. No final de junho, ocasião em que foi lançado o primeiro dos três volumes, também foi aberta em São Paulo a mostra A Música Canta a República, no Instituto Tomie Ohtake. A exposição, com visitação gratuita até 2 de agosto, tem curadoria do pesquisador, jornalista e produtor cultural Vladimir Sacchetta, que também foi responsável pela bela edição de imagens dos livros e por garimpar o material iconográfico fartamente reproduzido em suas páginas.
A gênese da trinca lançada agora por Franklin remete a 1997, ano em que o jornalista, despretensiosamente, passou a manter na internet um site pessoal para escrever notas e comentários políticos. Nele, também criou uma seção chamada Som na Caixa, em que digitalizava e disponibilizava excertos de áudio com a voz de personagens históricos e trechos de discursos que marcaram a história política do País. Vez ou outra, o espaço também era usado para apresentar aos leitores canções de cunho estritamente político. Essas publicações motivaram colaborações de amigos, e de outros jornalistas e pesquisadores que, aos poucos, foram sugerindo novas canções, com temas correlatos ao perseguido por Franklin. A partir da primeira metade dos anos 2000, com o advento da democratização da internet, essa rede ganhou nova dimensão e foi então que o jornalista pensou em escrever uma obra de fôlego.
Em entrevista à Brasileiros, o ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação (SECOM) do governo Lula (entre 2007 e 2010), atribuiu aos três volumes de Quem foi que Inventou o Brasil? a característica documentar que a crônica política por meio da canção é uma tradição que distingue a produção brasileira da música popular de outros países. Algo percebido, sobretudo, por seu aspecto regular. Segundo Franklin, a irreverência e a astúcia dos nossos compositores são características latentes, desde os tempos do Brasil Império. “Quando Dom João IV chegou da Europa, foram feitas várias modinhas sacaneando a Família Real. Com o fim da Guerra do Paraguai (1864-1870), quando o Império entra em agonia lenta e gradual, a sociedade fica meio brochada e isso é um terreno fértil. Nesse contexto, o teatro de revista cresce muito e, pouco depois, surgem os cafés dançantes, onde eram cantadas as cançonetas, músicas que falavam não só sobre política, mas também sobre fatos da vida, geralmente, com duplo sentido, de conotação maliciosa e sexual. Surgem também os chopes berrantes, equivalentes escrachados dos cafés dançantes, em que o dono do bar botava o cara para cantar em cima de um tapume no balcão para, com isso, vender mais cerveja e mais chope. Quando tem início a indústria fonográfica, em 1902, havia no País um circuito muito forte, que se retroalimentava, de cafés dançantes, chopes berrantes e teatros de revistas. Algo percebido na primeira fornada de gravações do Brasil, em que já existe um grande número de músicas sobre política. Essa tradição se consolida nos anos 1910 e, no final daquela década, ganha força com o Carnaval. Algo que pode ser simbolizado com o samba Pelo Telefone, de Donga, que é gravado, vai para o carnaval de rua e faz um sucesso espetacular. No fundo, o Carnaval desse período também era um grande teatro de revista, só que a céu aberto, que não fazia diferenças entre atores e plateias, não tinha um script único, e sim uma coisa fragmentada.”
MPB, ROCK E BRONCA SOCIAL
No contexto em que Donga (coautor de Pelo Telefone com Mauro de Almeida) abre a página de uma nova era para a música popular do País, um contemporâneo seu, o compositor Eduardo das Neves, morto em 1919, também é digno de destaque, segundo Franklin. Para dirimir eventuais falhas de investigação, uma das últimas peneiras feitas pelo jornalista foi esmiuçar a obra completa de artistas com maior dedicação à temática política. Foi o caso de Eduardo, que reservava uma grata surpresa em seu repertório e foi equiparado por Franklin a uma estrela do que, 60 anos mais tarde, se convencionou chamar MPB. “Ouvindo todas as composições do Eduardo, descobri que Os Reclamantes era uma música sobre a Revolta da Chibata. Pelo nome eu jamais descobriria. Tanto que a mostrei para especialistas sobre o tema e eles não acreditaram que essa informação ficou, por décadas, perdida em arquivos. Eduardo foi um compositor muito ativo. Até 1919, ano de sua morte, ele era uma espécie de Chico Buarque daquele início do século 20.”
Chico, a propósito, é um dos símbolos da música de protesto que surgiu em meio ao ocaso da bossa nova e, com viés politizado, deu nova embalagem ao samba-canção. É o que defende Franklin: “Com a tentativa de golpe e a resistência à posse de Jango, em 1961, o País entrou em uma tensão política que acabou sendo absorvida pela música. Nesse contexto, a bossa nova passou a ter menos peso e abriu caminho para – seja lá o que for isso – o que ficou conhecido como MPB. Nesse mesmo período, o samba-canção voltou a ter muita força. Artistas como Anescarzinho do Salgueiro, Cartola, Nelson Sargento, Elton Medeiros e Zé Keti, passaram a ser mais valorizados. Essa geração redescobriu um samba que tinha ficado esquecido na década de 1950 e ele se renova, fica mais forte e requintado, algo perceptível em compositores e intérpretes sofisticados, como Paulinho da Viola e Nara Leão.”
Perpetuado nos anos 1970 com a MPB de Gil, Caetano, Gal, Milton e Chico, esse esmero com nossas tradições musicais cai em declínio no mundo novo desperto para a juventude emancipada do Brasil democrático dos anos 1980. Para alguns historiadores mais ortodoxos, o período é de alienação imperialista e negação das nossas raízes musicais. No entanto, no volume dois de Quem foi que Inventou o Brasil?, Franklin reitera a tese de que a crônica política jamais deixou de reverberar a história da República. Mesmo em meio aos decibéis elevados e os acordes distorcidos dos novos artistas surgidos à sombra de José Sarney, segundo dados caros à pesquisa do jornalista, cerca de 30% dos fonogramas do segundo volume foram lançados por bandas de rock, boa parte delas com registros precários do movimento punk brasileiro, não por acaso um celeiro mundial do rock politizado.
Em contrapartida, Franklin antecipa que o volume final de sua obra atestará como expressões regionais fora do eixo RJ-SP, vindas de Estados como Maranhão e Bahia, elegeram o reggae e o samba-reggae como voz de protesto. “É curioso perceber que aquela MPB dos anos 1970 quase desaparece na produção abordada no terceiro livro. É um período de rock, mas de muito reggae, samba-reggae e música de humor. Algo que tem a ver com a liberdade da redemocratização.”
Na contramão do deboche de grupos como Mamonas Assassinas, o grito incisivo das periferias do chamado “Brasil profundo” também se faz ouvir, em um fenômeno classificado por Franklin como “bronca social”: “Os compositores se prendem menos a eventos históricos e passam a confrontar o sistema sociopolítico de modo geral. Diário de um Detento, dos Racionais MC’s, é um bom exemplo. O questionamento do poder judiciário, as denúncias da ação do narcotráfico nas favelas e da miséria nas quebradas são a tônica desse rap. Nesse período (a música é de 1997), a característica de crônica permanece e ganha um sentido de bronca social”, diz Franklin.
Em visita à A Música Canta a República, o curador Vladimir Sacchetta contou à reportagem da Brasileiros detalhes de sua pesquisa para a edição de imagens dos livros, apresentou detalhes das oito alas que compõem a exposição e destacou imagens impactantes, exclusivas da mostra. Sacchetta cursou Direito entre 1971 e 1974, no auge sombrio da ditadura Médici. Formado pela Faculdade de Direito do Largo do São Francisco da USP, sequer prestou o concurso da OAB, porque, pouco depois, ingressou na equipe da publicação Nosso Século, da Editora Abril. Desde então, dedica-se a pesquisas históricas, em especial sobre Monteiro Lobato. A parceria entre ele e Franklin teve início há cerca de dois anos, quando foram dados os primeiros passos para a produção dos livros para a Nova Fronteira. Missão cumprida, Sacchetta enaltece o trabalho do parceiro e atribui valor distinto à obra. “O Franklin sabe que o jornalista pode fazer história ao tornar a História mais saborosa do que da forma que ela é contada pela academia que, presa às metodologias e ao discurso, muitas vezes, afasta o leitor comum. Quem foi que Inventou o Brasil? já nasce como um clássico da pesquisa musical. Ninguém havia feito um mergulho tão profundo como esse, e quem quiser conhecer a música do País do século passado vai ter que consultar o livro que, aliás, não servirá apenas aos pesquisadores musicais, mas também para cineastas, escritores e estudiosos do período.”
Aos interessados na história retratada por Franklin Martins, um complemento à leitura também está disponível na internet. Desenvolvido por Claudio Martins, que é filho do jornalista, e Pedro Santos Silva, o portal homônimo oferece excertos de áudios e arquivos completos de todas as músicas abordadas nessa obra fundamental.
GALERIA DE NOTÁVEIS – Alguns dos compositores reunidos nos três volume de Quem Foi Que Inventou o Brasil?
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