Cinco espetáculos em cartaz no teatro paulista são excelentes opções para o público conhecer um pouquinho de algumas importantes personalidades que fizeram história. Todos, de certa forma, polêmicos, controversos e geniais, cada um em seu ofício, em seu tempo e em seu espaço, com suas artes, têm motivos para inspirar não só as plateias dos teatros, mas, também, esse triste momento pelo qual o País está passando. Em comum, todos têm o fato de terem passado por significativos momentos de dualidade, de ambiguidades e de dúvidas (dentro de suas indiscutíveis convicções). Cada um deles, de sua maneira, foi exposto e enfrentou seu Fla-Flu pessoal, mas todos, hoje, têm o reconhecimento, a remissão ou a restauração de seus ideais, agora levados ao teatro.
Primeiro Galileu Galilei precisando decidir entre abjurar e abdicar de suas descobertas, em nome de dogmas católicos, para preservar a própria vida. Reconhecer que a Terra gira ao redor do Sol ou certas verdades, ali naquele momento histórico, poderia, como ainda pode, ser o caminho para a fogueira (e, hoje, para outras fogueiras…). No espetáculo, esse conflito, escancarado no texto de Brecht, dirigido poeticamente por Cibele Forjaz, com a atriz Denise Fraga no papel do cientista, resgata a questão da interferência das religiões, todas elas, não só na ciência, como também na política, nas artes, nas forças militares e no dia a dia das pessoas (em todos os lugares do mundo!). Ali, em jogo, a liberdade do desenvolvimento da ciência, a partir da qual, claro, todas as demais também “orbitavam”, assim como, hoje, no País, estão em cheque todas as circunstâncias da liberdade de manifestação e de expressão, que certamente também geram atraso, seja por um lado, seja por outro.
Também em cartaz a história de Chaplin, um dos maiores artistas de todos os tempos, que é revelado no espetáculo como o garoto pobre que conquista o sucesso, faz fortuna, casa-se várias vezes, tem uma vida glamourosa, ganha o mundo exclusivamente por sua genialidade, mas ao mesmo tempo é acusado de ser comunista… No espetáculo, dirigido por Mariano Detry, com versão de Miguel Falabella, Chaplin é interpretado por Jarbas Homem de Mello de modo comovente. Se Chaplin era um homem de temperamento extremamente difícil, por vezes egoísta e agressivo, era também um artista sensível, socialmente preocupado e responsável (ciente de sua influência), e, talvez por isso, amado no mundo todo. Então, aqui, de novo, a dualidade está em cena.
Mais ou menos como em Nine, um musical inspirado em Federico Fellini e, em especial, no filme Fellini Oito e Meio. Só que nesse espetáculo a dialética está no fato de o artista precisar sair de suas próprias contradições para, a partir daí, construir sua obra. Mesmo que sem inspirações muito românticas e com o reconhecimento do próprio fracasso, ter de buscar incansavelmente pelo sucesso. Esse drama, dirigido por Charles Möeller e Claudio Botelho, apesar de esteticamente belíssimo (principalmente por conta dos figurinos de Lino Villaventura) e de contar com a participação especialíssima de Beatriz Segall no elenco, se revela como contraditório em sua própria metalinguagem em diversos aspectos, eis que fala da falta de criatividade como mola para a busca criativa do protagonista, tal qual no filme em que se inspira (e que, embora autobiográfico, deu a Fellini, que se sentia pouco inspirado, o Oscar de 1964). Ora, o espetáculo é ironicamente pretensioso, justamente por tentar repetir a fórmula, forçada, e assim se tornar um paradoxal sucesso (e, nesse sentido, memorável, a cena da atriz Myra Ruiz, que faz a prostituta que “inicia” Guido, o protagonista, quando garoto). Curioso enxergar nesse espetáculo, em contraposição aos demais aqui comentados, uma trama que também pode ser projetada no âmbito da atual política brasileira é exercício interessante, na medida em que se revelam vários “fellinis” e nenhum Fellini ao meio de tantas de nossas crises…
Já S’imbora, o Musical, a História de Wilson Simonal, também aborda os altos e baixos de um grande artista, dessa vez um brasileiro. Um dos maiores cantores do País em toda nossa história, mas que padeceu sobremaneira por ter sido acusado de ser traidor. E, como tal, sofreu o verso e o reverso nos anos de ditadura militar e foi, talvez injustamente, o avesso do antagonista. Um anti-herói do anti-herói, agora “redescoberto”, em época e descobertas e de redescobertas no País. O musical, que conta um pouco da vida do grande artista a partir do texto de Nelson Motta e de Patrícia Andrade, é dirigido por Pedro Brício e tem como protagonista o extraordinário ator Ícaro Silva, que emociona intensamente o público, canta e dança com os trejeitos de Simonal, sem a pretensão de imitá-lo. Na peça, ao incluir canções marcantes dos anos 1960 e 1970, como Meu Limão, Meu Limoeiro, Pra frente Brasil e País Tropical, entre outras mais de 30 canções emblemáticas para toda uma geração, de novo, podemos estabelecer paralelos interessantes com o novo-velho Brasil de hoje em dia…
Por fim, outro musical brasileiro, Bilac Vê Estrelas, baseado no romance de Ruy Castro, dirigido por João Fonseca, com o excepcional ator André Dias interpretando Olavo Bilac, o “Príncipe dos Poetas Brasileiros”. De tamanha grandeza para a poesia, Bilac, apesar de seu parnasianismo, como o republicano que foi, talvez estivesse inquieto se vivesse atualmente, mas com motivos de sobras para se inspirar. Essa é a mensagem conflituosa dessa chanchada, que tem como pano de fundo uma fictícia história cheia de aventuras protagonizadas pelo grande poeta, em uma época de transformações, como, de novo, estamos vivendo hoje (sem o poeta!).
São grandes espetáculos que deveriam circular pelo País. Mas em São Paulo, não bastassem os agatonismos e ceticismos identificados dentro das peças (e algumas ironias como, por exemplo, Galileu Galilei, estar em cartaz, em São Paulo, justamente no TUCA, teatro da Pontifícia Universidade Católica), o que é marcante e, talvez, surpreendente é o interesse do público por essas biografias levadas ao teatro, principalmente o musical, e a demanda contraoferecida justamente em momento de liberação judicial, na literatura, das “biografias não autorizadas”. Mas é incrível perceber o quanto esses espetáculos conversam entre si, no tempo e no espaço em que estão inseridos. Vistos de longe, por uma luneta, como a de Galileu, talvez interessem ao contexto do País. Fellini olhando para o passado para ver o futuro. Bilac, as estrelas. Chaplin, as luzes da cidade e da ribalta. E, como cantava Simonal, o astro, “gira ao sol, que parou pra olhar”.
*Evaristo Martins de Azevedo é crítico de arte, membro da comissão de teatro e conselheiro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), e jurado do Prêmio Shell de Teatro.
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