Teatro: “Ledores no Breu”

Coluna_EVARISTO
Em geral, há dois tipos de leitores:  os que gostam de literatura e os que dizem que gostam. Assim, desta vez, a recomendação deste crítico, para um espetáculo de teatro, será apenas àqueles do primeiro grupo, os que gostam realmente de literatura. Mas, ainda assim, somente àqueles que apreciam a literatura de muito alto nível, cuja qualidade seja excepcional. E cujo teor seja profundo, sem falsas erudições (dessas invariavelmente rasas e cultivadas pelos pretenciosos!), compreensíveis em quaisquer dialetos, idiomas, culturas ou povos, ancestrais ou moderníssimos. Esta crítica é para quem gosta de teatro e para aqueles que dizem que não gostam.

Levar a arte literária ao palco, de modo que seja mantida a excelência da prosa, da poesia e do quinhentismo é ministério muito difícil, exceto se o ator em cena for, de fato, extraordinário. E mais especialmente ainda se o ator estiver sozinho, em um monólogo. É o que acontece com “Ledores no Breu”, com o  Dinho Lima Flor, e sob a direção de Rodrigo Mercadante, ambos da premiada Cia do Tijolo.

Espetáculo extremamente sofisticado revela o poder transformador da alfabetização, ainda que tardia, depois, muito depois, da juventude. E, em fragmentos, como se fossem capítulos, o espetáculo aborda questões, causas e consequências do analfabetismo. E, ainda, como se não bastasse, também propõe o confronto entre os analfabetos cheios de sabedoria e os letrados pouco sábios.

 E longe de ser mero porta-voz de oprimidos, o espetáculo consegue desconstruir a imagem do analfabeto vista (pelos míopes, simplistas!) ora como vítima, ora como bandida, como se o analfabeto fosse ou um indigente ou um criminoso, e, neste caso, como se esse seu status quo fosse uma característica quase lombrosiana.

 Ao contrário disso, a peça encena a lição de Paulo Freire,  o cordel de Zé da Luz e o léxico de Guimarães Rosa, todos juntos, cruzando-se, para entender essa escuridão. E, sobretudo, busca respostas na poesia de Patativa do Assaré, de Lêdo Ivo, de Cartola e de Veríssimo, ou seja, na obra dos gigantes,  para discutir, artisticamente, o analfabetismo por meio do teatro.

Assim, claro, o espetáculo tem como sua virtude maior o excepcional entrelaçamento de textos, tramado de maneira realmente emocionante. Mas, ainda que o grande mérito da peça seja o texto, não seria possível enxergar nele  tamanha beleza  e, ao mesmo tempo, o peso de seus dramas tão intensos, não fossem as impressionantes interpretações do ator Dinho Lima Flor. Sua atuação é memorável…  O ator,  só,  com seus personagens e com os carvões que compõem a cenografia, desenha as letras, escreve o nome da mulher amada, compõe palavras, alfabetiza-se. E alfabetiza o público com sua ode, dança com ele, canta para ele.

 Por fim, mostra que, depois compreender os signos da palavra, pode jogar com ela, manejá-la, decifrar. Mas também ser dúbio e ferir.  E sair, então, do breu e passar a enxergar melhor, quando a sede acumulada por libertação clama por leitura e pela literatura, forma poetas, forma leitores, ledores.

“Ledores no Breu”

Quando: Até 28 de fevereiro; sexta, às 21h30; sábados, às 19h30;

Onde: Sesc r. rua Bom Pastor, 822, Ipiranga, São Paulo, SP. tel.: (11) 3340 -2000;

Bilheteria: 9h/22h (terça a sábado). Ingressos também em toda a rede Sesc;

Ingresso: R$ 20,00.

 
* Evaristo Martins de Azevedo é crítico de teatro;  conselheiro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte; e,  jurado do Prêmio Shell de Teatro.


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