23 anos do massacre do Carandiru: “De lá para cá, o sistema carcerário só piorou”, diz advogado criminalista

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Há 23 anos, o dia 2 de outubro entrou para a história. No mais grave episódio do sistema prisional brasileiro, uma briga entre facções de presidiários na Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, foi violentamente reprimida pela polícia e causou 111 presos mortos e 110 feridos. 

O episódio trouxe à tona não só a superlotação e maus tratos nas cadeias brasileiras mas também o abuso policial. Para José Carlos Abissamra Filho, Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e coordenador-chefe de convênios do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a situação só piorou de lá para cá: “O número de presos no Brasil aumentou exponencialmente nos últimos anos. E quanto maior a população carcerária, maior a violência em todos os níveis”.

Como o senhor avalia o sistema penitenciário brasileiro hoje e o que mudou desde o Massacre do Carandiru?

Houve uma mudança drástica. Prende-se hoje muito mais do que se costumava prender naquela época. O crescimento da população carcerária é exponencial. Isso tem sido divulgado pelo Ministério da Justiça e pelo CNJ. Temos uma população carcerária em torno de 600 mil pessoas. Naquela época nem havia dados sobre isso, mas quando começaram a compilar dados era uma coisa de 200, 150 mil. Nos últimos dez anos houve um agravamento com relação ao número de presos e eu considero isso relevante porque na medida que você tem uma população enorme presa, aumentam os efeitos que provocam a criminalidade. Quanto mais presos, maior será a violência. Em todos os níveis: violência contra os presos, pelos presos, na sociedade de uma forma geral, violência do aparato estatal. A prisão é uma violência em si. Quanto mais gente presa, maior a violência do sistema punitivo e mais violência em todos os sentidos. Houve uma piora nesse aspecto com relação há 23 anos.

O senhor é contra a política de encarceramento, então qual seria uma alternativa a isso?

Sou frontalmente contra a política de encarceramento. Acho que a reversão desse movimento de encarceramento em massa seria uma solução. Precisamos urgentemente prender menos, inclusive para dar segurança às pessoas. Há um pedido legítimo por segurança, que acaba se confundindo com um pedido por mais prisão. Mas é o contrário: menos prisão é a solução para mais segurança.

Mas o senhor acha que o problema é o sistema penitenciário como funciona hoje ou o encarceramento em si?

No sistema criminal, você tem varias situações diferentes. Você tem o direito penal, que vem sendo endurecido, tem o sistema carcerário cada vez mais forte e o sistema policial mais efetivo, mas setorizado. O sistema policial é muito forte com relação à parte da população e pouco efetivo com outra parte. Mas eu considero que, de uma forma geral, o sistema criminal vem inflando. Eu considero isso um grave equívoco enquanto solução para o problema da segurança. O sistema criminal deve murchar, deve ser repensado. Quanto mais dor, mais pena, mais polícia, mais a gente vive uma realidade de guerra urbana.

Mas o senhor acha que valeria aperfeiçoar o sistema penitenciário ou pensar em outras penas que não o encarceramento?

Nem um nem outro. Temos que pragmaticamente usar menos o sistema penal. Temos que diminuir o número de presos. Se a gente cumprir a lei da execução penal, está ótimo. Não precisamos construir mais presídio. Basta prender menos. Com relação às penas alternativas, elas podem ser um alívio ao sistema mas há estudos que dizem que, quando são implementadas, elas na verdade trazem a pena da prisão mais a alternativa. Não acho que sejam uma alternativa.

E como que o sistema penal deixaria de ser usado?

Se a gente tirasse do sistema, por exemplo, a quantidade de jovens sendo presos por tráfico, já daria um belo de um alívio. Há estudos do Núcleo de Estudos de Violência da USP que mostram que a maioria dos presos por tráfico são jovens entre 19 e 29 anos e primários. E com uma quantidade muito baixa de droga, que gira em torno de 50 gramas de droga, de uma forma geral. Essa juventude está usando drogas, talvez esteja passando de um amigo a outro, talvez inclusive ganhando um pouco de dinheiro com isso, mais para manter o vício ou ganhar um trocado. A gente prende essa juventude como se fosse traficante de verdade, o problema do sistema. Eu tiraria essas pessoas do sistema. Como fazer isso? Mudar a mentalidade que gira em torno da lei, tirar o problema do tráfico como se fosse a panaceia de todos os males, diminuir a importância que se põe no assunto e prender menos. Precisamos repensar essa política anti-drogas. Tiraria algo em torno de 25% de pessoas do sistema carcerário.

E por que houve esse aumento exponencial no número de presos ao longo dos últimos 23 anos?

Eu atribuo isso a uma tendência mundial. Não é um problema só do Brasil. Seguimos a lógica dos EUA, que são um país que encarcera muito. As pessoas pedem mais punição, como se fosse dar a segurança que querem. Existe um clima contra a impunidade, que acaba gerando mais pedidos por prisões. Existe também um populismo em torno do direito penal. O direito penal é um segmento do direito e que não necessariamente precisaria estar atrelada à política do dia a dia. Se você vai formar um código penal, não tem que ser feito em um ano. Pode levar 10 anos porque tem que ser feito para durar. O direito penal é usado por muitas movimentações políticas. A  mídia de massa também usa esses problemas criminais como forma de ganhar lucro, programas de televisão que exploram esse setor.

A política de encarceramento já se mostrou falha no objetivo de conter a criminalidade no Brasil. Por que se insiste nisso? Por que é uma tendência mundial?

Tem muita gente estudando esse fenômeno. É difícil de responder isso objetivamente, mas eu me arrisco a algumas hipóteses. Você tem um mundo muito mais globalizado, as fronteiras estão diluídas, a sensação de insegurança é muito grande. Chegamos nesse ponto levados por esse grande movimento. Como fazer o movimento inverso? Questionando, estudando e denunciando essa inflação penal.

Qual a urgência dessa questão ser discutida no País?

É de prioridade máxima. Você tem algo em torno de 600 mil pessoas no sistema carcerário, incluindo o regime fechado e semi-aberto. Se incluir o regime aberto, passamos de 700 mil pessoas. Digamos que cada pessoa que está presa tem dois ou três familiares. Se você incluir umas cinco pessoas em torno de um preso, a gente tem quase 5 milhões de pessoas girando em torno do sistema penitenciário. Se incluir uns cinco amigos, dá 10 milhões. Quase 5% da população vivendo diretamente os efeitos do sistema penitenciário. Por que estamos fazendo isso com a nossa população? Com os jovens, com a nossa força de trabalho. A gente pune os jovens com uma espécie de pena capital, porque a pena no Brasil hoje tira a pessoa dos estudos, do mercado, estigmatiza ela para sempre. Por isso é que ela volta para a criminalidade. O presidente Obama disse recentemente que ele teve uma segunda oportunidade na vida. Se não tivesse, talvez fosse também um dentro do sistema carcerário. Os nossos jovens não têm uma segunda chance.

O Obama foi o primeiro presidente americano a entrar em um presídio. Nunca tive notícia de um presidente brasileiro em um presídio.

Nem eu. E nem iria tão longe. Se as autoridades que respondem pelo cumprimento da lei entrassem em um presídio, já melhoraria a situação. Tem muito juiz que até entra no presídio, mas não vai no pavilhão ver o que acontece. Não vamos colocar os juízes em situação de risco, não dá para o juiz entrar lá como se nada tivesse acontecendo, mas uma boa vontade na hora de entrar no presídio ajuda no sentido de ver aquelas pessoas. Muitas autoridades não sabem como é o sistema penitenciário. Se promotor de justiça, advogado, entrasse no pavilhão, conversasse com os presos, tenho certeza que se prenderia muito menos.

Em que pé está essa discussão no Brasil?

Estamos um péssimo momento. De piora, não diálogo, de enfraquecimento da ideia de se questionar o sistema penitenciário. Quanto mais o tempo passa, a gente anda para trás. Eu estou muito pessimista com esse assunto. Há um movimento conservador contrário às liberdades individuais que vem ganhando força.

Qual a dimensão da violência policial no Brasil e qual seria uma forma de resolvê-la?

Vivemos um momento de muita violência na sociedade de uma forma geral. Estamos vendo cenas fortes de policiais envolvidos em uma guerra urbana. A diminuição de número de presos já daria resultado porque diminuiria a tensão na sociedade. Há pessoas que dizem que a desmilitarização da polícia pode ser uma solução.

Houve uma mudança no comportamento da polícia da época do massacre para cá?

Acho que não. Vivemos uma transição de relação do poder estatal com o cidadão ainda muito antiga. É a mesma relação, da autoridade acima do cidadão. Há uma discussão muito interessante em torno do crime de desacato. No Brasil, desacato ainda é crime. Você não pode se insurgir contra uma autoridade, considerando uma abordagem excessiva? Será que isso condiz com um Estado Democrático de Direito? Por que eu não posso questionar uma autoridade? Sou cidadão. Pela Constituição, em tese, o poder não pode invadir a minha esfera de privacidade e de forma indiscriminada. O policial tem um poder acima do cidadão. Essa estrutura leva ao abuso e existe há muito tempo.

 


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