A menor cidade do Brasil


Nas conversas corriqueiras,
ela é apenas Serra. O nome do usuário e a senha para se conectar à rede wi-fi na praça principal também são Serra. Na hora de contar histórias do passado ou falar da peculiaridade local, todos usam o nome completo e um aposto – Serra da Saudade, a menor cidade do Brasil. Incrustada em uma cadeia de montanhas do Centro-Oeste mineiro, Serra da Saudade somou 822 habitantes no Censo 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e Esta­tística, o IBGE. Nenhuma outra cidade brasileira tem tão poucos moradores.

Em contrapartida, a área é grande – só 4,6 vezes menor que o município de São Paulo, onde se espremem 11,8 milhões de pessoas. Mesmo sem jamais ter visi­tado a capital paulista, Pedro Afonso do Amaral Alves, 7 anos, compara as duas cidades, na classe do 1o ano do ensino fundamental, que divide com apenas quatro colegas. “Serra não é como São Paulo”, diz. “Aqui tudo é calminho. Não tem ladrão. A gente pode brincar na rua, pode brincar em qualquer lugar.”

Tranquilidade, de fato, tem de sobra. Não por acaso, as portas e janelas das casas costumam ficar abertas durante todo o dia. Abertos também ficam os carros estacionados nas ruas, muitas vezes com a chave na ignição. O movimento aconte­ce em torno da praça principal, onde está instalada a Prefeitura e o Centro Cultu­ral, além de a maior parte dos serviços.

O comércio é coerente com o tamanho da população: uma loja de confecções, uma padaria, uma casa de produtos agrope­cuários, uma agência dos Correios, uma casa lotérica, dois mercados, e seis bares, que ninguém é de ferro. Farmácia não tem. Quem precisa de remédio, consul­ta o médico na unidade de saúde e, na sequência, avia a receita sem pagar nada. Dentista, fisioterapeuta, acupunturista, psicólogo e exames laboratoriais também são de graça. Com orçamento anual de R$ 13 milhões, vindos de repasses fede­rais e estaduais, a Prefeitura banca boa parte do atendimento à população, cuja renda mensal per capita gira em torno de um salário mínimo.

A escola de Pedro Afonso, o garo­to que comparou Serra da Saudade a São Paulo, é a única da cidade. Por enquanto, está de bom tamanho. Os 152 alunos dos ensinos fundamental e médio contam com 14 professores e duas supervisoras, o que resulta em turmas pequenas, com direito a atividades extras que envolvem até releituras de clássicos do teatro. Quase a metade dos alunos mora na zona rural e chega à escola em trans­porte escolar. Antes de começar as aulas, todos tomam café da manhã. No meio da jornada, há uma pausa para o almoço, “com carne todos os dias”. O turno encerra com um café da tarde. No primeiro ano fundamen­tal, além da professora Janete Nunes, há um estagiário, Cássio Rodrigues.

Aos 27 anos, Cássio faz curso de pedagogia a distância, em uma faculdade de Santos (SP), e planeja se tornar professor na cidade, onde nasceu. “Poucos homens trabalham com os primeiros anos do funda­mental, mas é o que quero fazer”, conta o estagiário. Cássio também não escolheu o caminho habitual de rapazes e moças de Serra, que se mudam para cidades maiores, na primeira oportunidade que aparece. Sim, no que diz respeito ao trabalho, a cidade oferece pouquíssimas opções. Com 160 postos de trabalho, a pre­feitura é de longe o maior emprega­dor. As fazendas de gado e de lavou­ra de subsistência demandam pouca mão de obra. Daí, o esvaziamento da cidade, embora tenha registrado um crescimento de sete moradores nos últimos quatro anos, pelos cálculos do IBGE.

Nem sempre foi assim. Na primei­ra metade do século passado, Serra fervilhava. Pela ferrovia que corta­va o então vilarejo, escoava a produ­ção de café, milho e gado, além de madeira extraída na região. A Pensão da Barra, na antiga estação, às mar­gens do rio Indaiá, chegava a servir 200 refeições por dia. O movimento

na outra estação, na praça principal, também era intenso. A construção está preservada, mas agora abriga um barzinho. Daqueles tempos, uma das atrações são dois túneis para a passagem de trens, inaugurados em julho de 1925, com 850 m e 1.000 m de extensão. Ambos podem ser per­corridos de ponta a ponta.

Nascido em uma propriedade rural próxima aos túneis, José Gomes Sobri­nho, o seu Zezé, 77 anos, conta que o trem passava pela manhã e à noi­te. “Todo final de tarde, juntávamos os cabritos para o trem não pegar”, lembra seu Zezé. “De manhã, depois que o trem passava, soltávamos de novo.” Na estrada que leva aos túneis, uma placa do Circuito Turístico Cami­nhos do Indaiá indica a entrada para a Nascente da Balofa e explica a ori­gem do nome. Maria Balofa era uma prostituta que trabalhava no antigo cassino da cidade e se apaixonou por um homem casado. “Por ser prostituta, estava sendo maltratada e ninguém a respeitava”, informa a placa. Em algum momento de 1948, Maria Balofa se matou na nascente onde costumava lavar suas roupas.

Quando o corpo foi encontrado, Pau­lo Ribeiro Neto, agora com 78 anos, estava entre os que acudiram ao lugar. “Do lado da Balofa, tinha uma lata de estriquinina”, diz Neto. “E era bonita a mulher.”

Do cassino onde circulava Maria Balofa não sobrou nem fotografia. Os trilhos da ferrovia também foram arrancados em 1969, tempos depois de a estrada ser desativada. A rodovia que passava por Serra também caiu em desuso, devido à construção de uma estrada federal asfaltada, a 60 km da entrada da cidade. Na casa centenária, impecavelmente conser­vada, que herdou do sogro fazendeiro, outro aposentado, Odilon Costa, o seu Odilon, 89 anos, fala do passado em uma tarde de calor escaldante. Ele chegou a Serra da Saudade há exatos 70 anos, em busca de oportunidades. Na fazenda onde nasceu e a mãe tra­balhou até morrer, em Nova Serrana (MG), não tinha futuro: “Vim traba­lhar na bomba de gasolina. Tinha duas bombas em Serra”.

Hoje, para abastecer, é preciso se deslocar para alguma cidade vizinha. A mais próxima, Estrela do Indaiá, fica a 24 km. Nos tempos em que “o trem corria”, seu Odilon, de forma indire­ta, também acompanhou a criação de Brasília. “Os caminhões com mate­rial para as obras passavam o tempo todo por Serra”, recorda. Ao fazer a retrospectiva, ele só confidencia dois pesares. O primeiro é não poder sen­tar-se na recém-construída varanda da casa em companhia da mulher, Zizinha, que morreu há nove anos. O outro foi a demolição gradual do cassino, um edifício de pedras com amplas janelas de vidro, que teria sido visitado até pelo presidente Getúlio Vargas: “Cheguei a entrar no cassino. Era muito bem construído. Histórico. Não podia ter acabado”.

Mais atentas ao futuro e à boa for­ma, as novas gerações usam o cami­nho que levava ao cassino e chega aos túneis como pista de caminha­das. Entre os rapazes e moças que permanecem em Serra, 15 enfrentam cinco vezes por semana mais de 100 km diários, para fazer faculdade em municípios vizinhos. Saem de Serra às 17 horas e voltam pouco depois da meia-noite, em uma van. A via­gem e o motorista são subsidiados pela prefeitura. Estudante de fisio­terapia, Isabela Machado, 20 anos, está entre os passageiros. Escolheu o curso por gostar da profissão, mas também de olho no mercado. “Os dois fisioterapeutas que trabalham em Serra moram fora da cidade”, diz Isabela. Por outro lado, ela também adoraria viver em uma cidade maior: “Gosto de muvuca”, assume Isabela. “Adoro festa.”

Em Serra, as principais festas são a do Peão e as religiosas, quando a cidade fica lotada. “Nessas ocasiões, a missa é na rua, pois a igreja só com­porta 60 pessoas sentadas”, afirma o padre Carlos Chaves, que fica na casa paroquial de Estrela do Indaiá e reza a missa em Serra uma vez por semana. Para a estudante Isabela, a melhor festa é a ceia de Natal, servida em amplas mesas na praça principal. “É uma ceia pública”, explica Isabe­la. “Na verdade, é uma grande ceia familiar, pois todo mundo se conhe­ce.” Na mesma praça, adolescentes costumam passar horas, grudados no celular, usando a conexão livre de internet. Um grupo deles conta que o aplicativo mais usado é o WhatsApp, por meio do qual conversam com todo mundo. Jogos baixados da Play Store também estão sempre em alta.

A desenvoltura dos adolescentes ao relatar suas peripécias on line desaparece de repente. Mesmo tendo combinado tirar fotos para esta repor­tagem, eles saem correndo assim que a fotógrafa Luiza Sigulem começa a preparar o equipamento. Semiescon­didos em uma esquina, observam o único colega que conseguiu lidar com a novidade: João Vitor Faus­tino, 13 anos, que continua ligado no celular, sentado em uma janela do Centro Cultural. “Lá dentro tem um telecentro”, diz João Vitor. “Uso quando preciso fazer pesquisas para a escola.” Quem tem computador em casa, também acessa a internet de graça. Basta se cadastrar na prefei­tura para receber o sinal.

A 5 km dali, a Fazenda Passatem­po adota outro tipo de tecnologia para fazer fertilização in vitro. À frente da empresa estão os irmãos Antônio Humberto e Miguel José Amâncio, ambos veterinários. “Produzimos de 1.000 a 1.200 embriões por mês”, diz Antônio Humberto. “Inovulamos em receptoras do Brasil inteiro.” Como a maioria das vacas doadoras da fazenda é da raça Gir e Girolando, com nomes brasileiros, e o sêmen para fecundar seus óvulos vem dos Estados Unidos, o registro de filia­ção das crias acaba sendo curioso: Shamrock com Noviça, Aftershock com Secatória, Hunter com Panasca, e por aí vai. A empresa, que empre­ga 30 pessoas, incluindo o pessoal do laboratório, começou a trabalhar com fertilização in vitro, em 1987. Nos arredores, a maioria das fazen­das investe no gado de corte.

Na zona rural, como no centro urbano, reina a paz. O último homi­cídio registrado em Serra aconteceu em 1957, quando a cidade não pas­sava de um povoado. Seu Zezé, aque­le que nasceu próximo aos túneis, lembra bem: “Foi uma briga de bar, quando mataram meu primo Isidro, que tinha uma lavoura de café”. O sargento da PM Ronan Paulino e os outros três policiais do destaca­mento de Serra atendem em média a duas ocorrências por mês. “Só quando há evento grande ou algum furto de animal em fazenda, o que também é raro”, informa o sargen­to. Ele, no entanto, reconhece que acompanha de perto a chegada de carros estranhos à cidade. Desde que se tornou a menor cidade do Brasil, Serra da Saudade passou a atrair visitantes, embora careça de infraestrutura para recebê-los de forma adequada. A possibilida­de de geração de empregos encan­ta a prefeita Neusa Maria Ribeiro, que há tempos acalenta a ideia de investir em turismo.

Neusa, que diz ter “49 anos há sete anos”, foi eleita pela primeira vez em 2008 e reeleita quatro anos depois, com 86,7% dos votos váli­dos. Para ir de casa ao gabinete, ela apenas atravessa a rua. Ainda assim, Neusa não para. Antes no PDT em coligação com o PSDB, a prefeita agora está no PROS (Parti­do Republicano da Ordem Social), da base aliada da presidenta Dilma Rousseff. Na cidade com apenas três seções eleitorais, ela está em plena campanha. “Nas últimas elei­ções, mais de 40 deputados foram votados em Serra. Estou mostrando quais os três que trouxeram inves­timentos para cidade”, argumenta Neusa. Em sucessivas reuniões, ela vem mostrando cada projeto execu­tado e a contrapartida da prefeitura. Fala também dos projetos “ainda” não aprovados. São mesmo mui­tos empreendimentos. Entre eles há uma creche de primeira linha, inaugurada em março, que atende a 50 crianças até 5 anos.

Uma das estratégias adotadas pela prefeita é viajar para Brasília nos finais de ano e tentar remane­jar para Serra verbas destinadas a prefeituras impedidas de recebê-las por falhas no projeto ou em presta­ção de contas. “Às vezes, dá certo”, comenta Neuza. “Já cheguei de Bra­sília só com tempo de trocar de rou­pa e ir para o baile de Réveillon.” Há ainda muito a fazer, a começar por um aterro sanitário, que ela tenta criar em consórcio com uma cidade vizinha. A situação do esgoto sanitário também preocupa. Desde que a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) assumiu o serviço, o esgoto é lançado em um córrego: “Para jogar no córrego, era preferível o sistema antigo, de fossa”.

Enquanto discorre sobre os pro­blemas a serem enfrentados, Neusa quase perde a calma ao ver copos plásticos e uma garrafa pet jogados no chão da praça, onde não faltam lixeiras. Foram deixados pelos ado­lescentes que saíram em disparada, com vergonha de sair na foto. A pre­feita não se faz de rogada e cata ela mesma o lixo. Depois, volta a falar dos planos de incentivar o turismo em Serra da Saudade – antes, a menor cidade mineira, agora a menor do Bra­sil. Como outros moradores, Neusa sabe que a chegada de muitos visi­tantes pode alterar a tranquilidade local. Aliás, alguns serranos sugeri­ram que a repórter não contasse que deixam suas casas sempre abertas. Na verdade, o único que teve um pouco de prejuízo com a maior visibilidade da cidade foi o produtor do destilado Dama da Serra, dono de um estoque de rótulos com o mote “A grande cachaça da menor cidade mineira”. Vai ter de mudar.


Comentários

Uma resposta para “A menor cidade do Brasil”

  1. A Rvista Brasileiros foi a primeira em se dedicar aos pormenores de Serra da Saudade com destaque para o cotidiano manso, discreto e envolvente do povo! Parabéns as Luizas, q como n canção de Tom deram o tom luminoso, pueril e autêntico de nossa pequena Serra!

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