Em um episódio da série Mad Men, o personagem Lane Pryce diz que o nevoeiro de Londres foi inventado por literatos como Charles Dickens: “Não existe nevoeiro em Londres. Nunca existiu. Aquilo era apenas poeira de carvão da era industrial”. Será que a garoa de São Paulo também só existiu nos poemas de Mário de Andrade e seus contemporâneos? Ou ela era apenas um subproduto da poluição?
Essa hipótese foi sugerida pelo geógrafo Tarik Rezende de Azevedo. Segundo ele, “a chamada ‘terra da garoa’, que é apontada por muitos como algo do passado, talvez seja a representação popular de um longo período que vai dos anos 40 ao início nos anos 80 em que a poluição foi soberana” em São Paulo.
“É possível que esta não seja a condição original do clima da Bacia de São Paulo antes da implantação da Metrópole. Nas primeiras observações meteorológicas sistemáticas na Cidade de São Paulo, que remontam às décadas de 80 e 90 do século XIX, não é chamada a atenção para o chuvisco ou ‘garoa’, mas para os temporais e trovoadas de fim de tarde”, diz Azevedo. Com a fuga das indústrias para outras cidades, reforçada pela adoção de controles de poluentes, a “garoa” começou a perder força.
Mas, apesar da impressão de que o fenômeno desapareceu, ainda existe garoa em São Paulo. Segundo os meteorologistas Samantha Martins e Ricardo de Camargo, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP, “não há tendência de diminuição no total de dias com garoa ao longo do ano” desde que as medições começaram, em 1933. Existem flutuações no número de dias com garoa de um ano a outro, mas a reta de ajuste não exibe tendência de redução (nem de aumento).
O problema, segundo os meteorologistas, é que “muitas vezes a garoa pode simplesmente não ser notada”, em razão das mudanças no estilo de vida dos moradores da cidade, “que atualmente fazem mais atividades em locais fechados”. Por outro lado, é preciso ressaltar que as informações da Estação Meteorológica do Instituto de Astronomia procedem de “um local com vegetação preservada nas últimas décadas, fato que pode ser consideravelmente diferente em outros locais da região metropolitana”. Assim, a garoa persiste nas áreas verdes. Nas regiões sem cobertura vegetal, o cenário muda bastante.
De fato, quando se passa de uma região arborizada para outra sem cobertura vegetal, a temperatura média sobe. Como explicam Martins e Camargo, “o concreto e o asfalto, produtos amplamente utilizados em áreas urbanas, absorvem mais radiação solar durante o dia, aquecendo-se e emitindo mais calor de volta para a atmosfera em relação a coberturas vegetais. Isso faz com que a temperatura média das cidades seja maior que a temperatura de áreas verdes adjacentes”.
A expansão da mancha urbana, aliada ao aquecimento global, aumentou a temperatura média anual na cidade de 2,3°C entre 1933 e 2015. A cidade está cada vez quente: “Esse aumento é muito perceptível qualitativamente, pois, perguntando para moradores mais antigos da cidade, muitos dirão que as manhãs eram mais frias no passado (a temperatura mínima é a menor temperatura do dia, que normalmente é registrada no final das madrugadas)”.
Mas, além da temperatura, as chuvas também vêm aumentando, embora sigam um regime cada vez mais polarizado: quando chove, chove muito; nos meses secos, a estiagem é cada vez mais aguda. Essas mudanças climáticas estão associadas às “ilhas de calor” criadas pela urbanização. Basta lembrar o que ocorreu em Guarulhos. Nos anos 70, quando começaram a ser feitos os estudos para a construção do novo aeroporto metropolitano, a escolha de Cumbica foi bastante criticada devido à frequência com a área, situada num vale próximo à Serra da Cantareira, era assolada por intensos nevoeiros. Contudo, à medida que Guarulhos cresceu (237 mil habitantes em 1970, 1,221 milhão em 2016), os nevoeiros, que ocupavam mais de 500 horas anuais em 1978, despencaram para menos de 100 horas anuais.
“Em relação a Guarulhos”, observam os meteorologistas, “deve-se considerar a indiscutível urbanização deste município desde a construção do aeroporto, com a supressão de áreas vegetadas para o surgimento de novos bairros, com suas ruas e edificações. O cimento e o asfalto aquecidos durante o dia liberam esta energia no período noturno, efeito conhecido por ilha de calor urbana. Isso faz com que as condições locais sejam progressivamente menos favoráveis para a formação de neblina”.
Situada mais ao sul, Paranapiacaba continua favorecendo o aparecimento da neblina exatamente porque não sofreu os efeitos da urbanização: “Paranapiacaba não é uma área tão urbanizada quanto Guarulhos ou partes da periferia paulistana e, além disso, fica em uma área de serra, o que favorece a formação de neblina. O ar oceânico, rico em umidade, é forçado a subir a serra através da circulação dominante e também pela ação da brisa marítima, e encontra condições para condensar seu vapor d’água ao ser erguido, já que a temperatura é menor em áreas de maior altitude. Com este processo de condensação são formadas nuvens do tipo Stratus, que são nuvens baixas responsáveis pela neblina”.
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