Cada bife ancho com exatos 400 gramas que deixa o assador pilotado há 15 anos pelo paraibano Armando Alves da Silva leva suas marcas peculiares. Quem estiver perto, no terraço aberto ao lado, eventualmente ouvirá o som das maritacas que o churrasqueiro atrai depositando pedaços de pão entre as heras. Para a maioria dos clientes, que não podem desfrutar desse momento de convívio explícito com a natureza, resta ainda outras formas de diálogo.
Nos últimos 35 anos milhares de paulistanos repetiram o ritual que vem depois do depósito do pedido na mesa: cortar a peça com a faca, levar um pedaço para a boca com o garfo, mastigar – e pensar. É o momento de verificar se o paladar confirma aquilo que os olhos viram antes, escolhendo pelo cardápio. O instante de avaliar se corte, tempero, preparo e sabor realmente se encaixam num modelo, realizam de fato a promessa de satisfazer pelo modo próprio de outra cultura tratar a carne. A hora de saber se verdadeiramente se cumpre a promessa evidente, estampada no logotipo da casa: “Martin Fierro, Tradicional Argentino”.
Enquanto os clientes julgam, muitas vezes os olhos sempre atentos de Ana Maria Massochi observam discretamente a expressão daqueles que saboreiam o prato. Para ela, a satisfação com o corte que mais identifica seu restaurante confirma uma sofisticada teoria: “Há um DNA peculiar na carne argentina, que é a presença do gado hereford. Eu procuro transmitir esse traço integralmente para os clientes”. Para passar essa mensagem via DNA, ela não admite na casa outra carne que não seja a importada de seu país natal, a única capaz de confirmar as palavras que o logotipo estampa como promessa.
A soma do tradicional logotipo, do prato tradicional e da mensagem sustentada na tradição pecuária argentina inexoravelmente leva a supor um enquadramento igualmente tradicional da figura da proprietária do restaurante – que os tempos atuais, nos quais a gastronomia vem se transformando numa soma de técnica com espetáculo, tornariam muito palatável. Ana Maria Massochi seria, então, a chef que segue o padrão – e o elo entre o modelo arquetípico argentino e cada unidade empírica de bife ancho servida na casa da Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo, a prova evidente do enquadramento da figura de tradição.
A ligação entre prato e padrão existe, é sempre reconfirmada pelos clientes que voltam para se deliciar, faz parte da intenção da proprietária. Mas esconde também uma história extraordinária.
A intuição de preservar um sabor puro vindo de longe, das hortas e dos açougues de Corrientes, dos tempos das leituras da avó também faz parte do restaurante
Para começar, Ana Maria Massochi só tem de portenho o registro na certidão de nascimento. Quando era ainda criança de colo, no início da década de 1950, seus pais deixaram a cosmopolita Buenos Aires para ir morar na mais que tradicional Corrientes. Ambos iam com sonhos modernizadores. Elsa Bertolotti era uma das primeiras mulheres argentinas formadas em Educação Física, queria dar aulas e disseminar novos modelos de lidar com o corpo; Carlos Massochi, um técnico e oficial da Marinha, decidiu largar a carreira militar e empregar sua formação numa nova atividade que prometia melhor futuro para a família.
No início deu certo. A cidade ainda mantinha o essencial de seu aspecto colonial, com as típicas casas formando calçadas cobertas nas ruas, o passeo espanhol. Dominada pelo fluxo do rio Paraná, Corrientes era o ponto de recolhimento da produção agrícola de uma população que falava mais guarani que espanhol, bem como da pecuária gaúcha. Ali se misturavam guaranis, gaúchos e muitos morochos – os mestiços, no Brasil chamados de caboclos. Gente diferente dos recém-chegados, ambos filhos de italianos criados nas letras e na capital.
Todos se acertaram em torno da implementação de planos de mudança para a cidade que incluíam a urbanização das margens do rio que dominavam os quadrantes norte e oeste – e a construção de um estaleiro fluvial e um serviço de balsas motorizadas para substituir as centenárias canoas, trabalhos mais que adequados para o chefe da nova família.
Durante a infância de Ana, tradição e mudança se complementavam também em casa: mesmo impondo novos hábitos alimentares, a mãe fazia questão de servir produtos frescos na mesa – e volta e meia a terceira dos seis filhos do casal era mandada de bicicleta para buscar legumes e verduras em hortas da redondeza ou carne muito fresca nos açougues – nesse caso, frescura em parte devida à velocidade do transporte nas novas balsas que saíam dos estaleiros nos quais o pai trabalhava.
Como tantos outros filhos de modernizadores, Ana Maria alimentou o gosto pelas mudanças – mas ainda na adolescência se viu diante de outro tipo de convívio com a tradição. Estudante secundarista nos anos 1960, logo estava no meio das manifestações estudantis que explodiam na cidade – e envolvida com Jorge Livieres, filho dos donos de uma imobiliária local. Militância e paixão ganharam nova forma com o nascimento de Paulo, quando ela mal completara 20 anos.
A ruptura teve forma trágica. O marido foi morto por reacionários, as ameaças que recebeu a obrigaram a abandonar a cidade. Conseguiu criar o filho em Buenos Aires, entre os avós e a proteção de sindicatos que arranjavam trabalho para ela em sua área de formação, como assistente social. Isso tudo aconteceu num tempo em que a Argentina ainda era uma democracia. Mas, com o golpe militar, foi impossível continuar no país.
Para encurtar a história: a longa viagem para o exílio termina na rodoviária de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde desembarcou com o filho e sem documentos. Acolhida pela diocese local, ela formou suas primeiras impressões do Brasil. Morava num quarto emprestado de periferia. Numa casa apertada entre outras, em contraste com os largos horizontes correntinos do rio Paraná. As idas ao açougue mal abastecido compeliram à decisão de adotar uma dieta vegetariana. A necessidade de sobreviver transformou a militante em sacoleira de roupas (a primeira leva encalhou porque não levava em conta o gosto da clientela local).
Depois do Martin Fierro, vieram o La Frontera, um leve sinal simbólico na direção da terra na qual vivia, e o Jacarandá, marcado pela produção local
Tudo isso lhe fez parecer mais que certo um incerto convite do companheiro de militância Hugo Ibarzábal, que se exilara em São Paulo: mudar de cidade e de ramo de atividade. O novo negócio era simples: vender empanadas. A lista das dificuldades nem tanto: nenhum dos dois tinha documentos (a empresa ficou no nome de um sócio chileno, Reynaldo Zembrano); o lugar escolhido era uma portinhola num bairro desconhecido para os três (a Vila Madalena); o melhor lugar pagável que Ana encontrou para morar foi um quarto nos fundos da casa de um dos muitos portugueses do bairro; o principal produto vendido era inteiramente estranho aos hábitos alimentares paulistanos.
Aos 30 anos de idade, enfim, Ana Massochi saberia o que é picar carnes, colocar as mãos na massa e assar para ganhar a vida. O negócio começou devagar, no ritmo da minguada freguesia que podia atrair uma portinhola argentina num bairro ainda fortemente marcado pela cultura e a culinária portuguesas. E então ela começou a colher as sortes não calculadas pela intuição de entrar no negócio: estudantes da USP apareceram para morar em quartos como os dela e uma produtora de cinema – a Tatu Filmes – se instalou bem na frente da porta sem placas.
As empanadas se tornaram um sucesso, a empresa nem tanto. Houve desavenças, o chileno dos documentos ficou com a loja, os argentinos exilados levaram embora a cozinha. Foram fabricar empanadas noutro canto, vendendo no atacado para o sócio antigo num primeiro momento. Acharam clientes novos: empórios de luxo e supermercados de nicho que trabalhavam com comida pronta.
Então a ditadura foi derrubada na Argentina. A vida de exilada terminava. Precavida, Ana Maria não liquidou o negócio de uma vez. Cheia de esperanças, desembarcou em Buenos Aires para sentir o momento. Logo estava numa manifestação das Avós da Praça de Maio – e intuiu que a pátria que a habitara interiormente nos anos em que estivera excluída já não seria um lugar para viver.
Voltou para a São Paulo que lhe era ainda estranha, mas a acolhia para seguir adiante. Seu cotidiano então se fazia com algo como 16 horas de trabalho diárias, divididas entre o cuidado do filho, as compras, a administração e as entregas – além da supervisão do investimento na instalação de um restaurante dos sonhos.
O Martin Fierro se fez entre os trancos da hiperinflação e do Plano Collor. Fortes o suficiente para que a sociedade com Hugo se desfizesse. Então, Ana Maria Massochi, que era militante de alma, estava empresária – e, pela primeira vez na vida, às voltas com o destino da cozinha, área de domínio de Hugo, na qual mal pisava.
Sem nunca ter pensado nesse destino, aceitava mais uma vez os comandos de sua intuição. A duras penas a realidade foi se entranhando no pensamento, e os negócios se multiplicando e ganhando nomes que revelavam uma curiosa trajetória. Primeiro veio o La Frontera, um leve sinal simbólico na direção da terra na qual vivia. Depois o Jacarandá, marcado pela produção local e o nome brasileiro.
Aos 65 anos (ela é daquelas mulheres que escandem com certo orgulho cada sílaba quando anuncia a idade na conversa), Ana Massochi racionaliza seu sucesso repetindo o pensamento de que o recado transmitido através do DNA de um bife ancho para todos os clientes do Martin Fierro seja aquele que dá sentido a sua obra.
Mas guarda cuidadosamente em casa um exemplar do poema de Jose Hernandez, com a seguinte dedicatória da abuelita Serafina: “Para minha querida neta Ana Maria. Quando leres este famoso Martin Fierro te recordarás de que, quando ainda não sabias ler, pedias que eu lesse este poema e eu o fazia com muito prazer todas as noites”.
Confrontada com a lembrança, ela reage bem ao modo do personagem do poema, um gaúcho do interior que vai de exílio em exílio pelos pampas que ama, perseguido sempre pela pressão modernizadora que vem dos portenhos europeizados do litoral, sem jamais perder seu caráter: “Nunca gostei de histórias de fada”.
Reforça assim fatos inegáveis. A militante Ana Maria Massochi existe, a empresária Ana Maria Massochi existe, a explicação que Ana Maria Massochi oferece sobre recados passados pelo DNA de cada bife ancho também existe. Mas tudo são exílios, pensamentos.
A intuição de preservar um sabor puro vindo de longe, das hortas e dos açougues de Corrientes, dos tempos das leituras da avó, também faz parte da história do restaurante Martin Fierro. Gera outra impressão, sintetizada em versos por outro poeta, Cacaso: “Minha pátria é minha infância/por isso vivo no exílio”. E com tal pátria Ana Maria Massochi alimenta as memórias de tantos outros, tão paulistanos neste viver como ela.
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