Aos 84, Clara Charf preserva memória e amor por Marighella

Sob o sol forte de 11 horas da manhã de quarta-feira, com um cravo vermelho numa das mãos e o microfone na outra, a voz sai mais fraca, mas a firmeza das idéias é a mesma de sempre. Aos 84 anos, aquela mulher miúda de cabelos bem branquinhos posta-se diante do carro de som e dá início, como faz há 40 anos, a mais uma homenagem póstuma a seu marido, assassinado numa emboscada exatamente naquele local, no dia 4 de novembro de 1969.

Raras vezes na vida, mesmo no cinema ou na literatura de ficção, conheci uma história de amor tão forte como a da ex-aeromoça pernambucana Clara Charf pelo guerrilheiro baiano Carlos Marighella, fundador e líder da Aliança Libertadora Nacional, uma das dissidências do Partido Comunista Brasileiro criadas durante o período de resistência à ditadura militar.

Cerca de 40 pessoas, entre amigos, parentes e velhos comunistas, que se referem a ele ainda como
“Mariga”, aglomeram-se na calçada da alameda Casa Branca, no Jardim Paulista. Na noite da sua morte, havia muito mais gente, é verdade – policiais, curiosos e jornalistas, entre os quais, o autor deste texto, um dos repórteres escalados pelo Estadão para fazer a cobertura.

Quem passa de carro não faz idéia do motivo que reúne aquelas pessoas diante de uma pedra em forma de lápide colocada ali para lembrar a morte de Marighella, entre a alameda Lorena e a José Maria Lisboa.

Por isso, Clara pergunta e ela mesma responde:

“Por que ele foi morto? Porque a sociedade não era justa, não tinha terra e trabalho para todos. Ele lutou desde jovem contra isso, foi preso várias vezes( ) Naquela noite veio se encontrar com dois companheiros para estudar caminhos que permitissem aos perseguidos sair do Brasil em segurança. Muitos que estão aqui devem sua vida a ele. () Graças a pessoas como Marighella chegamos ao Brasil que temos hoje, que está longe de ser perfeito, mas melhorou muito em relação ao que era naquela época”.

Desde quando teve seu registro de trabalho de comissária de bordo cassado em 1946, Clara Charf dedica-se a muitas lutas, tendo passado boa parte da vida na clandestinidade, outra como exilada, participando de protestos contra a bomba atômica à campanha contra o envio de soldados brasileiros para a Guerra da Coréia.

Até hoje, ela está na luta. Participa ativamente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, da Associação Mulheres pela Paz ao Redor do Mundo e da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Mas a maior de todas as lutas de Clara Charf nos últimos anos foi pela preservação da memória do grande amor da sua vida, hoje abrigada no Espaço Cultural Carlos Marighella, por ela criado.

Quatro décadas após a execução de Marighella comandada pelo delegado Sergio Fleury, o chefe da repressão em São Paulo, Clara fala com carinho do temido combatente, para ela “um poeta dedicado à solidariedade”, o homem mais procurado do país do seu tempo. A seu lado, estão o filho, Carlos Augusto, e a neta Maria, de 31 anos, artista de teatro, encarregada de ler um manifesto.

Diante deles, um cartaz do Espaço Cultural Carlos Marighella reproduz alguns versos de “Rondó da Liberdade”, o poema dele mais conhecido:

O homem deve ser livre ()

É preciso não ter medo

É preciso ter a coragem de dizer.


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