Auxílio psicológico na periferia busca o elo entre a violência da polícia e a ditadura militar

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Foto: EBC

O Brasil está longe de consolidar a democracia e criar na sociedade uma consciência crítica sobre os nossos 21 anos de ditadura militar. Nas periferias das cidades, áreas esquecidas pela imprensa e pelas políticas de reparação, esse cenário fica ainda mais obscuro. É o que acredita Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia, em entrevista à Brasileiros. Com o objetivo de revelar as narrativas ainda ocultas de quem resistiu à ditadura nas periferias é que o órgão, ligado ao Ministério da Justiça, em parceria com o Fundo Newton, iniciativa do governo britânico, inaugurou nesta semana a segunda etapa do projeto Clínicas do Testemunho. 

O programa, que existe desde 2013, fornece atendimento psicológico gratuito a vítimas da violência do Estado durante os anos de chumbo. Essa nova fase, no entanto, traz uma novidade: discute também a violência estatal cometidas nos dias de hoje. “A violência de Estado não cessou com o fim da ditadura. Continua atingindo com toda força os pobres, pretos e moradores das periferias dos centros urbanos no Brasil. Fazer emergir as marcas legadas pelo período de exceção tem também por objetivo contribuir para debater as continuidades das torturas, desaparecimentos forçados e mortes presentes que ainda geram sofrimento psicológico intenso”, diz o texto do lançamento do programa. O projeto é dividido em núcleos de atendimento voltados exclusivamente a vítimas da ditadura e centros de capacitação para formação de funcionários da rede pública e atendimento de vítimas da violência de Estado atualmente.

As unidades do programa são sediadas em quatro estados: Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro e Santa Catarina. Além disso, atividades serão realizadas em Minas Gerais, Pará e Espírito Santo.

Leia a entrevista completa com Abrão:

Revista Brasileiros – Existe uma carência em políticas de reparação e registro de vítimas da ditadura nas periferias brasileiras?

Paulo Abrão – O projeto nos ajuda a estabelecer vínculos entre o passado e o presente para toda a discussão em torno da justiça de transição [termo para o conjunto de políticas públicas para revisitar a violência do passado, atribuir responsabilidades, reparar as vítimas e garantir a não repetição dos crimes], que só é possível de ser implementada quando conseguirmos identificar quais são os padrões repressivos que permaneceram nos dias atuais. A possibilidade de termos uma Clínica do Testemunho dedicada às vitimas da violência do presente nos dá a possibilidade de elaborar de forma mais sofisticada quais são os efeitos de uma ditadura de 21 anos até os dias de hoje.

Então vocês vão dar enfoque agora à violência do Estado praticada no presente?

A nova fase do projeto das clínicas se caracteriza por essa inovação. Os três primeiros anos do projeto piloto estiveram focados especificamente nas vítimas diretas e familiares. Agora o programa se amplia para as vítimas do presente relacionando com padrões de violência do passado, entendendo que é tarefa da transição democrática também dar conta dessas consequências que acabam por atingir a vida das pessoas hoje.

Por que levar o projeto às periferias?

Essa nova fase pretende suprir uma lacuna de quais foram as consequências da ditadura na periferia, mas também ampliar a construção e difusão pedagógica de medidas contra a repetição [dessa violência] para setores da sociedade que a priori não participaram ativamente de todas as primeiras medidas que a Comissão de Mortos e Desaparecidos e a Comissão de Anistia foram implementando, como as indenizações, as Comissões da Verdade, as discussões em torno da elaboração da memorialização das vítimas. Se nós quisermos realmente estabelecer o fortalecimento dos valores democráticos, é fundamental adquirirmos uma dimensão educativa e dialogar com os setores populares da sociedade.

Por que essas populações das periferias não participaram dessas medidas de reparação que o senhor cita?

Primeiro porque a elaboração das consequências imediatas da ditadura também depende de quem externaliza as dores, teve mais capacidade de difundir seus traumas, tiveram melhores condições políticas, econômicas e sociais de explicitar a indignação em torno da violência que sofreu. Até os meios de comunicação numa sociedade elitista ajudaram a difundir as histórias da classe média, da resistência nas grandes cidades, a história de quem tem acesso a meios de comunicação, às estruturas do Estado, às estruturas educacionais que também difundiram a memória desse grupo. A exclusão do processo de memória é também resultado de padrões de desigualdade sociais. Assumir essa consciência e buscar esse público alvo é afirmar que a ditadura atingiu amplos espectros sociais. Significa construir uma consciência de que eles também foram atingidos por práticas repressivas distintas que tiveram repercussões em suas vidas; que eles também têm direitos à reparação, à memória, à verdade. Por último, é desejável fazer com que a valorização da democracia seja massificada como um bem de todas as classes, cores e rendas.

O Brasil está muito longe de consolidar e massificar esses valores?

A consolidação dessa consciência crítica em toda a sociedade aqui no Brasil ainda tem muitos navios pela frente. A Argentina, por exemplo, realiza uma grande marcha nacional todos os anos, no dia 24 de março, em Buenos Aires, capitaneada pelas abuelas e madres na Praça de Maio em torno da memória dos desaparecidos. É uma manifestação social de magnitude inimaginável aqui no Brasil: 150 mil pessoas de todas as classes, gerações, saindo às ruas naquele dia da memória para afirmar o “nunca mais”. A gente ainda tem muitos caminhos a percorrer e muitos corações a conquistar.

Por que, em São Paulo, vocês optaram por unidades nos bairros de Heliópolis e Perus?

Essas foram escolhas das organizações parceiras. Perus, por exemplo, foi escolhida por toda a simbologia. Pela primeira vez, ainda na época da prefeita Erundina, se iniciou um processo de abertura da vala comum no cemitério de Perus. Criou-se uma CPI na Câmara Municipal. Embora não tivessem as mesmas terminologias que nós usamos hoje, eram na verdade práticas de justiça de transição. A CPI não deixava de ser uma espécie de comissão da verdade, uma tentativa de resgatar todas as dores, dar voz a quem havia sido silenciado, reconhecer o direito das famílias em dar enterros dignos a seus entes queridos.

Foto: Rodrigo Farhat
Paulo Abrão. Foto: Rodrigo Farhat

O projeto vai acontecer em outras cidades do Brasil?

Sim, depois da primeira fase, que alcançou o Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, essa nova edição das clínicas vai também para Minas Gerais, Santa Catarina e Pará. 

Como as falhas na reparação e conscientização da sociedade sobre aquele período repercutem no Brasil de hoje?

Elas fragilizam o funcionamento das estruturas estatais porque desvirtuam seu objetivo fundamental, que é servir à sociedade e proteger seus direitos. Quando a gente relativiza essa finalidade, precariza a capacidade de funcionamento do Estado para esse fim especifico e perdemos a oportunidade de afirmar o Estado democrático na plena abrangência do termo. Se você pensar em todo o discurso de ódio na sociedade, na possibilidade de saída de armário de um discurso fascista, quando você percebe que algumas autoridades públicas admitem a hipótese de uma descontinuidade governamental de um governo que foi eleito de forma democrática, de fato aí tem algo que não está funcionando bem. Essa tolerância com esse tipo de relativização segundo conveniências conjunturais impacta em todo o serviço público e na relação da cidadania com o Estado, porque a gente permite o estabelecimento de um vínculo de desconfiança da sociedade em relação às instituições. Em que medida podemos exercer livremente nossos direitos e liberdades sem que isso possa ser usado contra nós no futuro? Essa crise que vivemos hoje é mais profunda porque ela afeta essa concepção institucional da relação do Estado com a sociedade civil.

E com relação à violência do Estado?

A violência policial, por exemplo, não foi criada na ditadura. Ela sempre existiu dentro de uma sociedade que foi constituída por um histórico colonialista como a nossa, que sempre estabeleceu opressões na relação do Estado com a sociedade. Porém, o padrão repressivo dessa violência policial que hoje vigora no País é resultado da cultura militarizada que a ditadura agregou ao funcionamento das instituições de segurança. A gente tem de identificar esses padrões, elaborar alternativas à postura do Estado com a sociedade e tentar romper esse ciclo, que no fundo tem a ver com aquilo que foi disseminado como uma cultura institucional dessas organizações repressivas. Pode-se afirmar que parte da violência institucional que vivemos hoje é resultante de uma concepção de um sistema de segurança desvirtuado.

Leia também a entrevista com o médico e psicanalista Moisés Rodrigues da Silva Júnior, que coordena uma das Clínicas do Testemunho


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