Marcos Prado e Marco Archer se conheceram nas baladas cariocas dos anos 1980, quando ambos eram muito jovens. Não se tornaram amigos, mas mantinham boas relações nos encontros na Hípica, na Lagoa, nas praias. Prado virou cineasta — é diretor do premiado Estamira, de 2004, e Paraísos Artificiais, de 2012 – e produtor do também premiado Tropa de Elite, que teve a primeira versão em 2007 e a segunda, em 2010, de José Padilha, com quem fundou a Zazen. Archer se tornou esportista, integrou a equipe brasileira de voo de asa delta e arrumou uma maneira de ganhar a vida de um jeito arriscado: vendendo cocaína.
Os dois ficaram longos anos sem se ver, até que Archer, por meio de um amigo, entrou em contato com Prado para dizer que queria transformar a sua vida em filme. Archer já estava preso havia cinco anos em Cilacap, a cerca de 400 quilômetros de Jacarta, a capital da Indonésia. Dessa primeira conversa, por telefone, ao documentário Curumim, apelido de Archer, foram 90 horas de papos telefônicos, uma dezena de correspondências e mais de três horas de imagens registradas com uma câmera clandestina pelo próprio condenado dentro do presídio de segurança máxima.
Condenado à morte por tráfico de drogas, o documentário mostra quem foi Marco Archer, o menino que, ao lado do irmão, acabou sendo criado por babás depois da separação dos pais e se tornou um dos protagonistas de uma tragédia familiar muito particular: o irmão morreu de overdose, o pai de cirrose, a mãe de doença. Archer foi fuzilado em janeiro de 2015, aos 53 anos.
Brasileiros – Como foi o primeiro contato que você teve com Marco Archer?
Marcos Prado – Um amigo dele, Beto, que aparece no filme, queria fazer um livro sobre a história do Curumim. Ele morava em Bali. Mas, em 2009, entrou em contato comigo, dizendo que Curumim queria mesmo era fazer um filme sobre a própria vida. Nós nos conhecíamos do Rio, somos da mesma geração, temos a mesma idade. Não éramos amigos propriamente, mas a gente se encontrava com frequência, nós transitávamos pelos mesmos ambientes nos anos 1980. Garoto de família boa, ninguém imaginava que, dali uns anos, ele estaria envolvido com aquelas maluquices. Curumim teve uma história muito louca e fascinante porque sobreviveu a muitos incidentes e acidentes. Ele achava que tinha sete vidas, que podia sobreviver a tudo.
Por que aceitou fazer o documentário?
Ele começou a contar sua história, fui pesquisando, vendo como foi a criação familiar, a infância… Ele e o irmão foram meio largados e criados por babás. Esses fatos começaram a fazer sentido. Nem todo mundo que não tem uma base familiar forte vira traficante ou bandido. Nada a ver. Mas viveu um primeiro caminho, né? Curumim teve outras influencias, vivia no Arpoador, de pés descalços, sempre com garotos mais velhos que já faziam uso de maconha. No final dos anos 1970, o Arpoador era o lugar da contravenção. Ele tinha 14, 15 anos e andava com gente de 19, 20. Depois, ele ficou perto da galera da praia do Pepino, que tinha outras características porque todos eram filhos de pais ricos e voavam de asa delta. De novo, foi “adotado” pelos mais velhos. Em pouco tempo, ele entrou para a equipe brasileira de voo, acho que eram uns 15 voadores. Curumim tinha talento para voar. Foi nessa equipe que fez a primeira viagem para a Colômbia e lá entrou em contato com a cocaína, droga que se fez presente em boa parte da juventude dos anos 1980. Mais tarde, ele foi para Los Angeles, carregando a droga na asa. Os aeroportos eram totalmente abertos, não tinha acontecido o 11 de Setembro, ninguém desconfiava que aquele
garoto carregava a asa lotada de cocaína.
Você ficou sensibilizado com a história de vida dele?
No início, eu achei interessante porque não sabia o que ia encontrar por trás da história do Curumim, mas o fato de ele estar no corredor da morte… Quando ele foi preso, todo mundo ficou sabendo pelos jornais. Ele foi pego no aeroporto de Jacarta, fugiu, ficou foragido e, finalmente, foi pego. Era 2004 e em quatro meses da prisão foi condenado à morte. Só em 2009 o tal Beto me telefonou. Nessa época, muita gente acreditava que Curumim iria conseguir reverter o quadro, pegar prisão perpétua, depois 20 anos e, uma hora, sairia da cadeia. O corpo diplomático estava trabalhando, Lula tinha feito o primeiro pedido de clemência, que só o presidente da Indonésia poderia atender, que foi negado. Curumim estava numa situação que nenhum brasileiro tinha estado.
A família dele era muito rica, não? Tecnicamente não precisa traficar para ganhar a vida…
O avô era muito rico. A família Archer, do Amazonas, é dona de rádio, televisão e jornal. Não precisava de dinheiro, mas muitos garotos da zona sul brincaram de traficante. Tinha a coisa do glamour, de ter a droga, as festas, o poder. A mãe dele, depois da separação, vivia viajando, deixava os filhos no Rio com as babás e achava que estava tudo certo.
Você acreditava que ele poderia escapar do fuzilamento?
Muita gente achava. Pensava que eu estava em um projeto incrível, atrás da história perfeita do anti-herói. O cara comete quinhentas loucuras, é preso e, no final, acaba solto. Tinha vontade que isso acontecesse, independentemente da escolha que ele fizesse em liberdade. Mas a história seria interessante por si só, por ele ter passado no limite de ser executado. Era um projeto de longo prazo porque diziam que ele iria sair, mas ninguém sabia quando. E, caso ele conseguisse se corrigir e fizesse uso disso como exemplo, seria uma história e tanto. Essa foi minha primeira intenção com o projeto. Nós fomos nos conhecendo, ele escreveu algumas cartas para mim, contando suas aventuras, sobre o pai, a mãe, a infância. Escreveu pouco, infelizmente. De qualquer forma, fui acumulando esse material sempre com a certeza de que ele iria sair daquele presídio.
O documentário mostra Archer usando um telefone fixo na cela. Existia uma permissividade no presídio?
Eles têm esquemas. A Indonésia é um país muito corrupto. De dentro do presídio, eles se conectam com o mundo, apesar de estarem em uma ilha deserta no meio do nada. Havia um acordo com o chefe do presídio. De vez em quando, Curumim me dizia que tinha de desligar a ligação porque sabia que os federais estavam na costa, pegando o barco para chegar à ilha. Aí os guardas faziam uma varredura, tiravam toda a mordomia, televisão, TV a cabo, micro-ondas, videogame… Depois os presos tinham de recuperar tudo de novo, subornar novamente os guardas para ter as coisas. É impressionante porque Curumim me falou que aquele presídio era cru, um cimento puro. Os nigerianos, que são os grandes chefes do tráfico de drogas na Indonésia, construíram um monte de coisas no presídio. A Indonésia realmente tem um problema de saúde pública com relação às drogas, mas não é a cocaína nem a heroína, que servem para os turistas que estão em Bali. Tem uma ilha em frente a Bali, onde é totalmente legalizada qualquer droga. As pessoas vão para lá para se drogar. A escritora australiana Kathryn Bonella expõe essa situação em três de seus livros. Em Hotel K, sobre a prisão de Kerobokan, conta sobre o nível absurdo de corrupção nesse presídio, tão grande que é chamado de hotel. Uma contradição. Os policiais capturam a droga dos turistas que estão vendendo e revendem a outros turistas e aos próprios turistas que ficaram presos. Não faz sentido nenhum.
E a câmera? Você que a levou para o presídio?
Eu não dei a câmera para ele. Fui contra num primeiro momento. Estava com receio de fazer uma coisa ilegal. Tentei com a embaixada do Brasil uma permissão, falei sobre o meu projeto com o embaixador da época e disse que precisava de uma autorização especial para filmar Curumim no presídio. Mas não consegui. O embaixador disse que não poderia ajudar porque estava em plena negociação para trazer Curumim e Rodrigo Gularte, também brasileiro, de volta ao País. Um documentário poderia atrapalhar. Dei um tempo e, um dia, Curumim me telefonou para dizer que tinha conseguido a câmera. Era uma câmera do tamanho da palma da mão, por isso as imagens são precárias. Falei que era contra porque ele poderia ficar ainda mais prejudicado. Nessa época, não sabia que o presídio era tão permissivo. Também achei que a câmera iria cair na minha conta e na minha consciência. Se ele morresse por causa dela… Mas Curumim disse que eu não deveria me preocupar, que um guarda amigo dele tinha levado a câmera, que esse guarda era parceiro dele. Eu pedi para ele gravar um depoimento, dizendo que estava lúcido e ciente do que fazia, que queria fazer um filme sobre a própria vida e eu não tinha nada a ver com a câmera. Se ele fosse pego, a responsabilidade seria dele.
Você visitou Curumim no presídio?
Estive com ele uma única vez em 2013. Fui sem autorização oficial, mesmo sabendo que não iria filmá-lo. Mas esse encontro foi importante. Aproveitei para entrevistar os amigos dele que moravam em Bali e refazer a trajetória da fuga de Curumim do aeroporto de Jacarta quando foi pego pela polícia. O presídio é um lugar ermo, leva 13 horas de carro de Jacarta até lá por estradas perigosas e eu só consegui entrar por causa da mulher de um amigo dele, que também estava preso. Ficamos quatro horas juntos, o tempo da visita.
Quem filmou o fuzilamento foi o guarda que deu a Archer a câmera?
Esse fuzilamento é uma reencenação. Ninguém filmou. Curumim estava sendo anunciado pra o mundo como o brasileiro que seria fuzilado e, como tenho toda a narrativa dele falando sobre seus últimos momentos, resolvi fazer essa encenação. Filmei com Super 8, como se fosse material de arquivo. Mas essa cena aconteceu numa mata na Barra da Tijuca.
O que você sentiu quando soube da execução?
Às vezes penso no processo todo que vivenciei, mais de 90 horas de telefonemas gravados… Eu sabia que, para conseguir tirar as coisas dele, teria de escutá-lo muito. Como Estamira, esse também é um filme de escuta. Um projeto de doação de escuta, de dar espaço ao outro. Acho que fez muito bem a ele, e a mim também. Óbvio que a gente se modifica com tudo com o que se envolve. Criamos uma intimidade, uma afinidade, uma cumplicidade. Queria passar isso para o público em forma de empatia, humanizando Curumim, tentando mostrar as ocorrências que aconteceram na vida dele, das escolhas, até onde foi parar. Ele merecia uma segunda chance. Curumim nunca pegou em arma. As pessoas questionam muito, dizem que muitos se viciaram e morreram de overdose por causa dele. Não foi por causa dele. O livre arbítrio para se drogar é de quem está se drogando. A discussão sobre a droga é muito mais profunda do que acreditar que Curumim estava matando pessoas de overdose. Mata-se um Curumim e surgem dez traficantes.
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