Campina Grande, lá onde o São João é bom negócio

Anarriê, anavantu, puxa o fole, sanfoneiro!

É só dar o grito de guerra, ou melhor, de paz, que a alegria se espalha por toda essa bela cidade paraibana de 400 mil habitantes, plantada no Planalto da Borborema, a 125 km de João Pessoa. Por que o São João de Campina Grande, faz muitos anos, é chamado de o “maior do mundo”? Em busca de respostas, a reportagem da Brasileiros chegou uma semana antes para acompanhar a montagem do grande espetáculo. Dois dias e um bom par de sapatos, olhos e ouvidos bem atentos bastaram para descobrir as razões do sucesso dessa baita festa que dura 31 dias sem parar (de 3 de junho a 3 de julho), recebe um público estimado em 2 milhões de pessoas, gera 12 mil empregos diretos e indiretos, tem cerca de 500 atrações e toca mais de mil horas de forró. Campina Grande e seu povo hospitaleiro provam que a alegria de viver, a música, a dança e a comida podem ser também um bom negócio. Para um investimento orçado em R$ 6 milhões, incluindo patrocínios de empresas privadas e ajuda do Governo Federal (o Estadual este ano ficou de fora), a cidade espera arrecadar R$ 70 milhões, ou seja, dez vezes mais.

Aclamado pela Academia Brasileira de Literatura de Cordel, em abril, como o maior cordelista brasileiro da atualidade, o poeta campinense Manoel Monteiro resumiu em uma setilha do folheto Venha viver em Campina o maior São João do mundo o espírito da festa:

Aqui nas festas de junho
Ganha indústria e ganha artista,
O prestador de serviço,
O empresário lojista,
Ganha toda economia
Na festa que propicia
Lucro até para cordelista.

A entrevista com Manoel Monteiro, os personagens anônimos ou famosos que colocam em pé o São João de Campina, o monumental Parque do Povo, com seus 42 mil m2, o Expresso Forrozeiro, o Mercado Central e sua colorida feira do entorno, a comida típica da Casa do Cumpade, um papo na calçada com o jovem prefeito Veneziano Vital do Rêgo, conhecido
por “Cabeludo”, os ensaios pré-juninos nos bairros: nas páginas seguintes, imagens e histórias da grande festa popular que você não pode perder. Ainda dá tempo.

São tantas histórias que melhor começar mesmo do começo, por ordem de entrada em cena dos personagens. Saímos de São Paulo no horário, às 11 da manhã, e chegamos a Campina Grande, após uma escala no Recife, pouco depois das três da tarde de sexta-feira, 27 de maio. Tive a sorte de viajar com Manoel Marques, um dos melhores fotógrafos da atualidade, sujeito tão bom que nem parece fotógrafo. À nossa espera no aeroporto de Campina já estavam a jovem jornalista Joyce Kelly Camêlo, assessora de imprensa do evento, e seu fiel escudeiro “Pipa”, nome de guerra de José Medeiros Barreto, um tipo popular que conhece todo mundo e todos os becos da cidade. Nossos guias.

Após um rápido lanche no hotel Garden, fomos logo à luta. A oito dias da abertura do São João, parece que a cidade está em obras. No centro, que já está todo decorado com motivos juninos, o trânsito anda devagar, é difícil encontrar lugar para estacionar o carro. Nosso primeiro destino é a nova Vila do Artesão, inaugurada no final do ano passado, onde hoje trabalham 400 pessoas em seus 80 chalés e oficinas. Durante as festas, aqui também vai ter trio de forró (sempre composto por sanfona, triângulo e zabumba) na praça de alimentação. Chamam a atenção a limpeza e a ordem nos espaços públicos.

No chalé 72, encontramos Fábio Nóbrega, 38, um dos promotores do Expresso Forrozeiro, grande atração da festa de Campina. Neste ano, o trem alugado da Companhia Brasileira de Transportes Urbanos (CBTU), com locomotiva e sete vagões, veio de Fortaleza. Vai partir da Estação Velha de Campina Grande em direção ao distrito de Galante, uma viagem de 75 minutos, a 10 km/h, para ir e outro tanto para voltar, cortando áreas rurais e bairros bucólicos da região. Em cada vagão, uma fartura de comes e bebes e um trio de forró, mas ninguém precisa se afobar porque barracas com pratos típicos e muita música estarão esperando pelos turistas no distrito de Galante, um lugarejo que parou no tempo e no espaço. O trem vai circular durante sete dias e a passagem custa R$ 80, com direito a uma camiseta.

Nóbrega era menino ainda quando Campina promoveu seu primeiro São João no centro, em 1983, numa área meio alagada conhecida por Coqueiros de Zé Rodrigues. A festa, lembra ele, surgiu da vontade popular. Veio dos bairros da zona rural para o centro da cidade, na administração de Ronaldo Cunha Lima, pai do hoje senador Cássio Cunha Lima (os dois foram prefeitos de Campina Grande, antes de governar a Paraíba). No começo, só havia um pavilhão de lona e um caminhão velho, em que se apresentava o cantador Capilé, dança das quadrilhas e algumas barracas de comida típica.

A cada ano, vinha mais gente. Três anos depois, no mesmo lugar, Ronaldo inaugurava o Parque do Povo, uma espécie de sambódromo do forró, que tornaria famoso o São João de Campina Grande. O que começou como brincadeira logo virou um evento altamente profissionalizado e lucrativo, que lembra o carnaval carioca e se tornou uma das principais fontes de renda da cidade. Uma das novidades deste ano é o Recanto da Poesia, uma homenagem ao cordelista Manoel Monteiro, de quem já falamos na abertura desta matéria. Aos 74 anos, com dificuldades de visão que o obrigam a usar uma lupa para ler, Monteiro lembra, nos versos e na sabedoria, o grande poeta popular Patativa do Assaré, mas se parece fisicamente com Vinicius de Moraes.

No escritório, bem na entrada da modesta casa geminada da Rua Vigário Virgílio, no bairro de Santo Antonio, encontramos o poeta no começo da noite, diante de uma velha Olivetti, máquina de escrever que o acompanha há mais de 40 anos, cercado de livros e folhetos de cordel por todos os lados. “Sei que estou andando num carro de boi em plena era do jato, mas não consigo nem passar diante de um computador. Acho estranho aquilo”, vai logo contando às visitas. Um dos principais responsáveis pelo resgate da Literatura de Cordel, que virou cult e até é tema de novela das seis da Globo, Monteiro é um daqueles velhos sábios capazes de rir de tudo, principalmente dele mesmo.

Começamos o nosso trabalho com o pé direito. Da casa dele, fomos direto para o Shopping Luiza Motta, onde toda sexta-feira rola um forró animado, promovido pela rádio Campina Grande FM. Na moderna praça de alimentação do shopping, o contraste chama a atenção: casais de todas as idades dançam agarradinhos, de rosto colado, como se estivessem sozinhos em um arraial na roça. Em volta, a muvuca lembra os bailes pré-carnavalescos do Rio de antigamente. Tem muita moça bonita, moça feia tem também, tem mulher de todo jeito, até mulher dançando com mulher, todas só querem se divertir. Está tão boa a festa que ninguém quer deixar ir embora do palco o veterano forrozeiro pernambucano Assisão, que lançou muitos anos atrás o sucesso junino Eu fiz uma fogueirinha.

Como também somos filhos de Deus, antes de voltar ao hotel tratamos de fazer a primeira refeição do dia em um dos mais tradicionais restaurantes da cidade, o Manoel da Carne de Sol (Rua Félix Araújo, 263, no Centro). Depois de uma linguiça do sertão de aperitivo, devidamente acompanhada por uma dose de Serra Preta, cachaça paraibana da melhor qualidade, serviram um pratão de picanha de carne de sol com feijão verde, farofa d’água, macaxeira cozida e vinagrete. Deu para os quatro e ainda sobrou comida. Recomendo.

Antes das nove da manhã de sábado, já estávamos chegando ao Mercado Central, um dos maiores e mais antigos do País, passeio imperdível em Campina Grande. Na feira livre, montada do lado de fora, chama a atenção um grupo de mulheres debulhando vagens de feijão verde. Entre elas, uma senhora muito idosa, que fala sozinha. Encostada a uma mureta, abre um sorriso sem dentes quando lhe pergunto a idade.

“Moço, nem sei mais a minha idade… Desde que a cabecinha ficou branquinha assim, esqueci…” Pergunto-lhe se é mais ou menos de 100, e ela abre outro sorriso. Deve ser menos, mas aparenta até mais. O feirante da banca ao lado dá uma pista: “Eu estou aqui há 40 anos e ela já estava aí quando cheguei”. Logo aparece uma filha de Maria, Luiza da Silva, que também não sabe a idade da anciã. Sobre a própria idade, informa: “Nasci em 1971. Pode fazer as contas…”.

Em lugar nenhum do mundo, eu que adoro mercados, vi nada parecido. Logo adiante das mulheres do feijão verde, tem uma ala enorme só de miúdos, vísceras de boi, porco e bode, para fazer buchada. Resquícios do tempo em que o povo da roça não tinha geladeira, ainda encontro muitas barracas de charque (entre R$ 8 e R$ 12 o kg) e peixe salgado e seco (a partir de R$ 2,50 o kg). A variedade é grande: piaba, pescada, bagre, tilápia, piau, corimã, bacalhau, corvina. Como estamos no agreste, 90% dos peixes são de água doce.

O toque de “modernidade” vem das motocicletas que, não sei como, conseguem circular no meio desse emaranhado de barracas e de gente. Entre as lojas na calçada tem uma de brinquedos antigos, feitos de pau e corda, onde reina Terezinha da Silva Vieira, que trabalha ali faz 45 anos. “Eu vendo de tudo”, anuncia, empunhando uma espingarda de brinquedo chamada soca-soca, também conhecida como “suvaquinho”. Nas barracas de fumo de corda, vendem rapé, cachaça e cachimbinhos que custam um real.

Entusiasmado com seu trabalho, o administrador do mercado, Lindomar Gomes Pereira, também é o locutor da rádio comunitária que montou para poder se comunicar com seu povo, principalmente para pedir maiores cuidados com a higiene. E atento aos novos tempos da comunicação cibernética, o homem que cuida do mercado construído há 70 anos, criou também um site (www.feiradecampina.com) com músicas e vídeos. “Tem até fábricas aqui dentro, o que você pensar nós encontramos aqui”, garante Pereira.

Do lado de fora do mercado, na Rua Manoel Pereira de Araújo, também conhecida como Rua Boa, onde funcionavam os “bordéis da feira velha”, pode ser encontrada a figura folclórica do Bigode, como é chamado Antonio Marcos Barbosa, o único que vende bode vivo (R$ 100 a cabeça), além de pato, peru, galinha, frango e guiné, tudo vivo. Os bichos são trazidos de Aroeiras, cidade que fica a 70 km de Campina Grande. Do tempo antigo, só sobrou de lembrança na rua o Dinhas Bar.

Por onde se passa a essa hora, 11 da manhã, sente-se o cheiro de cominho, coentro, churrasquinho de gato e frango na brasa, ao som de forró vindo dos carrinhos dos camelôs que vendem legítimos CDs e DVDs piratas. Pelo celular da Joyce, ficamos sabendo que o prefeito poderia nos atender agora, se corrêssemos até a Rua D. Pedro I, onde ele está acompanhando as obras de recapeamento do asfalto em um dos acessos do Parque do Povo.

Fica difícil descobrir quem é o senhor prefeito no meio daquela roda de jovens que conversa animadamente na calçada. Veneziano Vital do Rêgo se adianta e se apresenta, agradecendo a nossa visita. Aos 40 anos, o advogado que quebrou a sequência de 22 anos de poder da dinastia dos Cunha Lima em Campina Grande, eleito em 2004 e reeleito em 2008, sob o lema “Novas Ideias”, não aparenta ser político. Com seu rabo de cavalo e roupa esporte, poderia passar por mais um dos cantadores de forró chegando para a festa. Os motoristas dos carros que param no farol buzinam e acenam para ele.

Sempre com pressa, para dar conta de deixar tudo pronto para a multidão que vai invadir Campina daqui a uma semana, Veneziano, que o povo só chama de Cabeludo, resolve dar a entrevista aqui mesmo, sentado nos degraus da entrada de uma casa. Sabe de cor todos os números para justificar o título de “maior São João do mundo” que a cidade ostenta. “Aqui, todo mundo ganha, desde o comércio informal do ambulante do milho cozido até os hotéis de luxo de João Pessoa, que ficam a apenas uma hora daqui e lotam nesta época do ano.”

Nas voltas que a vida dá, a festa cresceu tanto que o Parque do Povo ficou pequeno para tanta gente e, da mesma forma como o São João veio da roça para o centro, nos anos 1980, agora o prefeito Veneziano está cuidando de descentralizar o evento, espalhando-o pelos bairros e pela zona rural, montando estruturas de palco, banheiros e barracas de comida, além de providenciar sanfoneiros e cantadores. O grande diferencial de Campina Grande, segundo ele: “Aqui, a festa dura 31 dias, o dobro do carnaval de Salvador. Entre os seus e os de fora, esperamos 2 milhões de pessoas circulando na festa este ano”.

Ainda mais que falar da festa de São João, o prefeito se empolga com o que chama de “vocação tecnológica” da cidade. Com a boa fama dos profissionais formados nesta área nas universidades públicas de Campina Grande, dezenas de empresas de desenvolvimento de softwares se instalaram na região e hoje a cidade exporta tecnologia de ponta e mão de obra especializada em Tecnologia da Informação para mais de 40 países. Dez por cento da população da cidade é formada por universitários.

Ao meio-dia em ponto começa mais um Momento Junino, programa produzido nesta época do ano pela TV Borborema, aos sábados, no Parque do Povo, e transmitido ao vivo durante duas horas. No palco da Pirâmide, o coração da festa enfeitado com 50 mil bandeirolas coloridas e as imagens dos três santos juninos (João, Pedro e Antônio), está se apresentando o sanfoneiro e cantador Amazan. Sanfoneiro e cantador, como sabemos, é o que mais se encontra por aqui, mas José Amazan da Silva, 47 anos, ex-lavrador e ex-servente de pedreiro, é o único que tem uma fábrica de sanfonas, a Leticce. Aliás, a sua é a única fábrica de sanfonas atualmente em funcionamento no País. Peço desculpas aos leitores, mas vão ter de ter um pouco de paciência. A história de vida e superação de Amazan é tão boa que não cabe nesta matéria e, por isso, será publicada na próxima edição.

Cerca de 200 operários estão neste momento trabalhando na montagem de barracas, das ilhas de forró e da cidade cenográfica de Vila Nova da Rainha, o antigo nome de Campina Grande na época da fundação da cidade. Dezenas de barracas de bebidas e comidas já estão disputando a freguesia que circula uma semana antes de a festa começar. Mas nós vamos almoçar na famosa Casa da Galinha (Rua José Rodrigues de Lima, 164, em Santa Terezinha), que serve a própria em um molho espesso, com pirão, arroz e todos aqueles acompanhamentos da comida nordestina, que fazem de cada refeição um banquete.

Depois de passar a tarde na fábrica de Amazan, fizemos já à noite uma viagem até Cuités, bairro da periferia de Campina Grande, um dos muitos onde vai acontecer mais um ensaio de quadrilha. A costureira Marlene Oliveira Lima, uma senhora muito baixinha e muito simpática, vem nos receber à porta da sua casa. Só pede para não ser chamada de chefe de quadrilha.

“Não fala assim, que podem me prender. Melhor chamar de coordenadora-geral…”, brinca ela. Marlene e o marido Dedé criaram a quadrilha Arraial em Paris há 21 anos e comandam, desde janeiro, os ensaios em um galpão montado no quintal da sua casa. São 16 casais entre 13 e 35 anos, que ensaiam quatro vezes por semana (quartas, quintas, sábados e domingos), durante três horas.

O tema deste ano é a cultura da cana-de-açúcar. A música é Frevo Mulher, de Zé Ramalho. As fantasias da quadrilha, confeccionadas por Marlene, com mais duas ajudantes, custam de R$ 150 a R$ 200, e cada um paga a sua. As quadrilhas têm meia hora cada para fazer a sua apresentação. Em 2009, em seu melhor ano, a Arraial em Paris conquistou o 3o lugar no Parque do Povo. Os coordenadores da quadrilha, que inclui toda a família Lima, o marcador Vinícius, o coreógrafo Josemias e o coordenador de teatro Deusdeth, são todos voluntários. Quase não há ajuda oficial: este ano, segundo Marlene, a Prefeitura dividiu apenas R$ 20 mil entre as 25 quadrilhas inscritas para o desfile oficial.

Na viagem de volta para o hotel, depois de traçarmos linguiça de bode e uma peça de carneiro assados na brasa no Almeida Bar (Rua Presidente Costa e Silva, 1225, em Santa Rosa), um dos poucos que ficam abertos até mais tarde, notei que um sincretismo musical se espalha pelo País. O mesmo som dos forrós da noite de sábado em Campina Grande poderia sair de um trio elétrico em Salvador ou ser puxado por uma escola de samba carioca. O importante não é mais o ritmo, é o volume, mas tudo vale a pena nesta festa. O único perigo é voltar surdo e gordo para casa. Boa viagem e bom apetite.

Colaboraram Dulce Helena Santana e Mara Kotscho


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