“Aqui, temos o maior São João do mundo”, essa é a primeira informação que me chega aos ouvidos assim que coloco os pés na pequena Caruaru, interior de Pernambuco. Mal sabia que ainda ouviria aquela frase muitas e muitas vezes. Para apurar essa e outras questões acerca do conhecido festejo junino nordestino, começo pela BR 232, que me leva à simpática Princesinha do Agreste, como Caruaru é conhecida.
A apuração tem início logo no carro que me leva até o centro, onde vou conferir a montagem da estrutura para a grande festa, que segue a todo vapor. Pergunto ao concentrado motorista, afinal, por que a cidade recebeu o tal apelido? “Oxe, porque é bonitinha”, responde.
E está ainda mais bonita, afinal é Festa de São João. Impossível não perceber. Chego alguns dias antes da abertura oficial e encontro casas, ruas e praças fartamente enfeitadas com bandeirolas coloridas. A essa altura, enquanto escrevo essa reportagem, o forró já está comendo solto por lá. A festança começa oficialmente dia 4 e segue até o final do mês de junho. O ápice, claro, é dia 24, dia de São João.
Se Caruaru tem mesmo o maior São João, é difícil saber – há uma divertida rivalidade histórica com Campina Grande, na Paraíba. Mas que é grande, isso é. Com palhoças, quadrilhas, cordel, arraiais, shows e quitutes em geral, a cidade espera receber este ano mais de um milhão de pessoas ao longo de toda a comemoração. “Equivale ao Carnaval de Olinda”, compara o presidente da Fundação de Cultura e Turismo de Caruaru, José Pereira.
Para receber essa quantidade de pessoas, a prefeitura construiu uma megaestrutura, é como um Rock in Rio do forró. Mais de 300 artistas e grupos animam o palco principal e os diversos cortejos de rua. “O São João de Caruaru nem sempre foi assim, tão grandioso”, explica Pereira. As festas juninas, segundo ele, passaram por várias fases até chegar ao momento mainstream atual. “No começo, era a zabumba, a sanfona e o triângulo”, diz. A festança começou nas ruas, de forma bem espontânea.
Entre os precursores do saudoso período estão as irmãs Lyra: Juraci, Marinete, Eulina, todas na casa dos 80 anos, além de Odília, Adélia e Laurinda (já falecidas), que organizaram durante 21 anos – de 1972 a 1993 – as Festas de São João da cidade, com dinheiro do próprio bolso adicionado a muita disposição e esforço. Segundo as próprias organizadoras, elas pararam por falta de apoio financeiro. “As imagens mais fortes dessa época eram as fogueiras acesas na frente de cada casa para assar o milho”, conta Pereira.
Muitos, hoje, se questionam sobre o que restou desse tempo. Um deles é o historiador caruaruense, Daniel Finizola. “São João é uma festa do povo para o povo.” Para ele, é preciso adaptar-se ao crescimento, aos fatores econômicos e turísticos, mas sem perder tradições. “É possível encontrar um meio-termo.”
Uma tradição da cidade que se mantém até os dias de hoje – e também é um dos principais pontos turísticos – é a Feira de Caruaru. “Tudo o que há no mundo você encontra na feira de Caruaru”, diz a canção de Luiz Gonzaga. A Feira, na verdade, é um conjunto de feiras menores especializadas em alimentos, ferragens, roupas, artesanatos, raízes, flores e até bugigangas importadas. Considerada patrimônio imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a Feira de Caruaru é tida como a maior feira livre do mundo.
É quase hora de levantar acampamento e seguir rumo aos rincões baianos – Ibirataia seria meu próximo destino –, quando me atento ao fato de que ainda não havia descoberto de onde veio o bendito apelido da cidade. Mas encontro uma canção que faz menção ao nome, Cidade Princesa, do compositor Onildo Almeida, que também é o autor da antológica Feira de Caruaru, composta em 1955 e imortalizada em 1957 na voz do rei do baião Luiz Gonzaga. Aliás, velho amigo de Almeida. “Gonzaga gravou 23 músicas minha”, conta ele, todo orgulhoso. E com razão.
Onildo é umas das sumidades de Caruaru. Do alto de seus quase 83 anos, exibe uma memória de dar inveja e um vozeirão que dá gosto de ouvir. Ao longo da conversa, com energia e lucidez, conta histórias e canta trechos de composições antigas, todas carregadas de lembranças, uma autêntica trilha sonora cabra da peste de arrepiar a alma.
São causos e canções lá dos primórdios do legítimo baião no velho agreste pernambucano. Como a do dia em que o rei do baião o procurou, desgostoso da vida, pedindo ao amigo que fizesse uma última canção, pois ele iria encerrar a carreira. “Ninguém quer saber mais de baião”, teria dito Gonzaga, segundo Onildo.
O compositor caruaruense diz que tentou fazê-lo mudar de ideia, afinal ninguém traduzia como ele a alma do nordestino. Sem sucesso no nobre objetivo, atendeu ao pedido e compôs para o amigo a canção Hora do Adeus:
O meu cabelo já começa prateando
Mas a sanfona ainda não desafinou
A minha voz vocês reparem eu cantando
Que é a mesma voz de quando meu reinado começou (…)
A música tocou fundo o rei do baião, que não abandonou a carreira, mas, segundo Onildo, a surpresa não parou por aí. “Nem ele parou de cantar como previsto, nem a música fez o sucesso que a gente esperava”, conta, às gargalhadas.
O mestre Gonzaga se foi em 1989, mas sua música e poesia continuam marcando o ritmo do São João de Caruaru. A propósito, segundo Finizola, foi o rei do baião quem decretou em uma canção que Caruaru é a Capital do Forró. Eu me arrisco a perguntar por quê. “Porque está na música, oxe!”, responde, como se fosse o óbvio ululante.
E do barro nasceu mestre Vitalino
Se a ciência contesta a versão bíblica de que o homem nasceu do barro, é porque não conhece a comunidade de Alto do Moura. Lá, o barro deu vida ao sertanejo e até hoje garante o sustento de muitas famílias. Localizado a 7 km do centro de Caruaru, Alto do Moura é um refúgio de artesãos. Cada casa é um ateliê, nesse complexo considerado pela UNESCO o maior Centro de Artes Figurativas das Américas. Além do artesanato, não faltam restaurantes onde o forró corre solto e o prato principal é o bode.
É em Alto do Moura que surgiu Mestre Vitalino, o primeiro artesão local a ganhar fama internacional. “Até então, havia apenas a cerâmica utilitária, como panelas e outras peças”, explica o pesquisador Daniel Finizola.
Enquanto para muitos o sonho é fazer do trabalho uma diversão, para Vitalino Pereira dos Santos, o Mestre Vitalino (1909-1963), foi o contrário. Transformou seus brinquedos em trabalho. E mais, em arte. Finizola conta que Mestre Vitalino começou fazendo cavalinhos de barro, que levava para a Feira de Caruaru com seu pai, mas logo os brinquedos começaram a chamar a atenção: “Ele começou a retratar o cotidiano da região através do barro”.
Porém, tardiamente, aos 36 anos, é que ele passou a ser conhecido do grande público após exibir suas obras na 1a Exposição de Cerâmica Pernambucana, no Rio de Janeiro. Oito anos depois, em 1955, integrou a exposição Arte Primitiva e Moderna Brasileiras, em Neuchatel, Suíça. Além de ceramista, Mestre Vitalino era tocador de pífano.
Hoje, quem prossegue sua obra é um dos filhos, Severino Vitalino, 71. E se depender dele, a obra segue em frente ainda por muitas gerações. Todos os seus 13 filhos trabalham com o ofício da arte figurativa na cerâmica. E ele já tem 25 netos. Severino Vitalino trabalha até hoje na casa onde viveu com seu pai e que hoje abriga a Casa Museu Mestre Vitalino.
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