Em 2006, o Netflix, serviço de streaming de filmes, lançou um desafio ao público. Quem desenvolvesse um algoritmo que conseguisse melhorar em 10% a sugestão de filmes da plataforma receberia um prêmio, o Netflix Prize. Com ele, uma recompensa simbólica: 1 milhão de dólares. Na época, a empresa, líder no segmento de locação de filmes online, não somente resolveu um problema matemático, como ganhou popularidade e a atenção da imprensa.
Ações como a do Netflix não são isoladas. Cada vez mais, grandes empresas enxergam nas multidões uma possibilidade atraente: resolver lacunas estruturais e ao mesmo tempo solidificar e renovar suas marcas. A NASA é uma delas. Por meio de um pavilhão online de desafios, a agência convida desenvolvedores do mundo todo para oferecer além de soluções, criar novos produtos. Em contrapartida, oferece prêmios. E, para muitos, uma forma de reconhecimento global.
Conhecido como Crowdsourcing (na tradução literal “terceirização da multidão”), a prática ganha força e capilarização com as redes sociais e a Internet. Desde 2011, o tema também tem sido o centro de debates, palestras e workshops em São Paulo, capital, durante a Conferência Internacional de Crowdsourcing. Em sua quarta edição, o evento reuniu empresários, publicitários, estudantes e palestrantes internacionais nos dias 4 e 5 de setembro, no Teatro Raul Cortez da Fecomercio.
Para Marina Miranda, diretora geral do Grupo Mutopo Brasil e idealizadora da conferência, o evento funciona como uma curadoria do próprio assunto. “Esta edição está muito mais madura. Trouxemos, por exemplo, mais pesquisas para avaliar o que o mercado está fazendo, revelar cases e um pensamento mais estratégico sobre o assunto”, explica Miranda. “O Crowdsourcing é um aliado do marketing, da publicidade, da inovação.E você tem que ter todos esses elementos para que a ação seja sustentável dentro da empresa, senão vira uma ação pontual”, completa.
Empoderar o indivíduo em rede
No primeiro dia da conferência, Dora Kaufman, coordenadora do núcleo de Economia Colaborativa e Redes Digitais do Centro de Pesquisa Atopos da Eca/USP, compartilhou suas experiências acerca do tema ao falar sobre a pesquisa “Empresas e consumidores em rede: um estudo das práticas colaborativas no Brasil” que resultou em livro publicado em 2013. Para o estudo, Kaufman e equipe consultaram 45 empresas e sua relação com práticas colaborativas.
Segundo a pesquisadora, é preciso levar em consideração uma distinção importante. “Em geral, as pessoas tendem a tratar tudo como colaborativo. Mas há uma diferença”. No mercado, práticas interativas são diferentes de colaborativas. Na primeira, a interação com o cliente e consumidor segue uma via unilateral e diz muito mais sobre estratégias de marketing. Já sobre a colaboração aberta, Kaufman acredita que as empresas tanto da economia tradicional como da nova economia relutam em aderir práticas colaborativas, por questões estruturais. “Da nossa percepção, a maioria das empresas quando vão para as redes sociais vão com uma pegada analógica, vão para transmitir sua mensagem e não para dialogar. Se você analisar, tudo fica sob o controle da empresa. É diferente de abrir colaboração e até mesmo o diálogo”, pontua Kaufman.
O “empoderamento” dos indivíduos que a Internet tem potencializado nos últimos anos e sua forma de atuação descentralizada são também a base de uma das plataformas colaborativas mais bem-sucedidas da atualidade, o Wikipedia. Seu fundador, Jimmy Wales, falou sobre o modelo de colaboração por meio de videoconferência. Para ele, um dos grandes trunfos do Wikipedia diz respeito à neutralidade, o acesso à informação e a própria forma como consumimos notícias hoje em dia. “Com o Wikipedia, as pessoas podem entender um assunto, um fato de forma mais completa. Por exemplo, o conflito na Ucrânia. Há alguns anos era mais difícil contextualizar os fatos, entender com mais profundidade o tema”, defende.
Questionado sobre o modelo block-chain, que sustenta a moeda virtual Bitcoin, Wales acredita que o próprio banco de dados descentralizado chega a ser mais interessante que a própria moeda em si. “Se você conseguir dar um passo para trás para pensar filosoficamente os conceitos desta nova tecnologia, o que um modelo desses significa, e os novos serviços que podem emergir disso… Acho que é realmente um modelo fascinante. Eu não sei o que vai acontecer exatamente, mas acho que muita coisa vai sair daí”, declara.
Cultura de inovação
Em uma das palestras mais inspiradoras da Conferência, o CEO da Innocentive para América Latina e PhD em “Transformative Studies” pela New York University, Ari Piovezani, chama atenção sobre uma das principais dificuldades das empresas que querem inovar: definir, primeiramente, qual é o problema a ser resolvido. A Innocentive é uma das maiores plataformas globais de inovação aberta. “Nós somos chamados para instalar uma cultura da inovação e do crowdsourcing. E, por incrível que pareça, a grande maioria das empresas não consegue colocar com clareza qual é o desafio que elas precisam resolver. Se eu quero que todos os colaboradores entrem num processo de colaboração criativo, se o enunciado não está claro, a dificuldade já começa por aí”, defende Piovezani.
Para o executivo, as empresas precisam “ter humildade de reconhecer que nelas não trabalham todos os talentos”. Como solução, o crowdsourcing pode ser a saída mais democrática. A NASA, agência espacial americana, é uma das clientes da Innocentive. “Por que eu falo de humildade e da NASA? Porque na nossa consciência coletiva parece que na NASA todos os melhores cérebros estão presentes. E eles passaram um problema para nós. E eles gostaram tanto da brincadeira que fizeram um pavilhão com desafios abertos ao público”, ressalta. Para Piovezani, a cultura do crowdsourcing também pode ter uma escala micro, a começar pela própria empresa. “Meu recado principal é diversidade. Vamos abrir as portas da empresa pra todo mundo pensar, do porteiro ao diretor presidente. Diversidade é isso”, reflete.
Participaram ainda da quarta edição da Conferência Internacional de Crowdsourcing nomes como Stefan Lindegaard, da 15inno e Mário Kaphan, fundador do Vagas.com.
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