Homicídios em massa em que os autores são civis chamam a atenção do mundo. Nos Estados Unidos, onde é frequente esse tipo de ação, a posse e o porte de armas são garantidos pela Constituição. Estima-se que existam em todo o país entre 270 milhões e 300 milhões de armas de fogo em poder de civis.
A facilidade de acesso às armas tem relação direta com a violência letal. A tragédia na boate gay de Orlando só aconteceu porque a legislação da Flórida permite que um civil possa portar um fuzil, arma com capacidade para ferir gravemente muita gente de uma só vez, como na guerra. “É uma arma que foi projetada para matar com bastante eficiência, que tem número de munições no carregador muito alto, o que permite ao atirador matar um grande número de pessoas”, explica Bruno Lageani, coordenador da área de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz, uma das principais organizações da sociedade civil brasileira a lidar com o tema do desarmamento. “Não faz nenhum sentido vender esse tipo de arma para civis. O risco disso é muito grande”, conclui.
Em entrevista à rede NBC no dia 12, data da chacina em Orlando (12), o candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos Bernie Sanders se posicionou por um maior controle de armas. “Não deveríamos vender armas automáticas que são desenhadas para matar pessoas.” Na outra ponta, o candidato republicano, Donald Trump, qualificou o tiroteio na boate como um atentado terrorista e propôs que muçulmanos sejam proibidos de entrar no país. Para ele, a imigração de muçulmanos nos Estados Unidos é “uma versão maior e mais estúpida do cavalo de Troia”. Já a candidata Hilary Clinton, democrata, pediu maiores restrições à posse de armas e se opôs ao posicionamento de Trump. “Atacar os muçulmanos americanos é errado e vai dificultar o combate ao terrorismo”, afirmou Hillary.
O ataque à boate de Orlando foi o pior da história dos Estados Unidos. Mas o assassinato individual por arma de fogo mata muito mais. Um estudo recente publicado no American Journal of Medicine mostrou que a taxa de homicídios por armas de fogo nos Estados Unidos é 25,2 vezes maior do que a média de outros países desenvolvidos.
O alto número de mortes por armas de fogo está diretamente relacionado ao controle de armas. Quanto mais rígido esse controle, menos assassinatos. No Reino Unido, por exemplo, desde 1996, quando um homem de 43 anos entrou em uma escola de educação infantil e descarregou uma metralhadora em meninos e meninas de cinco e seis anos matando 16, a sociedade se mobilizou e, por meio de um plebiscito, exigiu uma reforma na lei de porte de armas. Uma das principais medidas foi proibir civis de portarem armas semiautomáticas e fuzis. Hoje, o país tem um dos mais rígidos controles de armas do mundo.
Não foi suficiente, no entanto, para evitar o assassinato a tiros da deputada britânica Jô Cox, 41 anos, na última quinta (16). Cox, do Partido Trabalhista, era uma defensora das políticas de imigração e defendia que o país aceitasse 3 mil crianças refugiadas, o que foi refutado pela ala conservadora.
Dados inéditos no Brasil
O Brasil tem o maior número absoluto de homicídios no mundo. É responsável por 10% do total de mortes por violência letal do planeta. Em termos proporcionais, em relação à população brasileira, estaríamos no 12o lugar num ranking de 154 países, segundo o Atlas da Violência 2016, publicado recentemente pelo IPEA.
Os quase 60 mil assassinatos registrados em 2014 e tabulados em estudos recentes acendem um alerta vermelho: desde que o Estatuto do Desarmamento foi implementado, em 2003, é a primeira vez que a taxa de homicídios cresce depois de um longo período estabilizado. Atualmente, são 29,1 homicídios por 100 mil habitantes. Em 2003, eram 28,9 por 100 mil habitantes. São cerca de 161 homicídios por dia no Brasil.
Essa situação quer dizer que a implementação do Estatuto do Desarmamento não apenas anulou a tendência de crescimento, que era de 7,2% ao ano, como também provocou uma forte queda de 8,2% no número de óbitos registrados em 2003. De acordo com o Mapa da Violência 2015, significa que o desarmamento teve impacto de 15,4% no número de mortes por armas de fogo no país. “São cerca de 160 mil vidas poupadas entre 2004 e 2012”, afirma o sociólogo Julio Jacobo Weiselfisz, coordenador da área de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, e responsável pelo Mapa da Violência. “Os homicídios no mundo têm função direta com o porte de armas, é o que mostram 90% das pesquisas.”
A tendência de queda terminou. Dados inéditos do Mapa da Violência deste ano, que será publicado nas próximas semanas e foram obtidos pela Brasileiros, reforçam que a tendência de queda terminou. O novo mapa mostra que houve 58.946 homicídios no Brasil em 2014, o maior número em termos absolutos desde 1980, quando se começou a contabilizar esse tipo de estatística. Pouco mais de 70% dessas mortes foram causadas por armas de fogo, segundo o DATASUS. “Isso mostra que o Estatuto funciona como política protetiva e preventiva. Retira as armas de circulação, instrumentos letais que tornam qualquer conflito uma tragédia”, diz Jacobo. “Mas o Estatuto não tem a intenção de solucionar o problema”, completa. Segundo ele, para que a queda de homicídios se sustentasse seriam necessárias outras políticas complementares ao desarmamento.
Outro dado fundamental para compor o cenário das políticas públicas de segurança no Brasil é o fato de que a vítima preferencial da violência letal no País continua sendo o jovem negro, com tendência a aumentar. Os números do Mapa da Violência 2016 mostram que a os homicídios de negros cresceram 15% enquanto os de brancos caíram 25%. “As políticas de enfrentamento à violência e aos homicídios têm um ranço racista persistente. A política se dedica a proteger os bairros brancos enquanto os bairros negros são desprotegidos”, alerta Jacobo. O sociólogo alerta que é necessário dar atenção também à letalidade policial. “Não se sabe em última instância quem mata mais, se civil ou se policial.”
Estima-se que no Brasil existam cerca de 15 milhões de armas ao todo, de acordo com um levantamento da ong Viva Rio. Dessas, 90% estariam em poder da sociedade civil e não do Estado, e metade seria ilegal. “O Estatuto do Desarmamento foi importante para estabilizar o número de mortes. Mas não pode ser a única medida”, afirma Bruno Lageani, do Instituto Sou da Paz. “O país demanda planos mais estruturados para que a gente consiga sair desse ranking macabro de ser líder mundial em homicídios.”
Na contramão desse cenário, um projeto de lei do deputado federal Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC) prevê a revogação do Estatuto do Desarmamento e sua substituição por uma legislação que flexibiliza a “aquisição, a posse e a circulação de armas de fogo e munições no território brasileiro”. O PL 3722/2012 voltou a tramitar recentemente na Câmara dos Deputados.
Um levantamento do Instituto Sou da Paz mostrou que a indústria armamentista repassou, até 2014, R$595 mil a candidatos pelo país todo. As doações foram feitas pela Taurus, a Companhia Brasileira de Cartuchos e pela Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições (cujos associados são Taurus e CBC). Os partidos PMDB e DEM foram os maiores beneficiários, recebendo metade do montante total. O então candidato a governador de São Paulo Paulo Skaf (PMDB-SP) recebeu R$ 100 mil para sua campanha em 2014. “Existe uma ameaça real de revogação do Estatuto do Desarmamento”, explica Lageani. “Há uma mobilização grande da bancada da bala e a indústria nacional tem tido problemas orçamentários e está investindo fortemente em tentar mexer na legislação para vender mais armas.”
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