A crise política que vivemos neste começo de 2016 é, sem dúvida, uma das mais graves e complexas da história do Brasil. Vale lembrar que o País tem uma história política profícua em crises que, quase sempre, terminaram em golpes de Estado seguidos de ditaduras. Muitos analistas políticos de plantão, diante do quadro atual, não hesitam em dizer ou escrever que o combo “golpe + ditadura + repressão” está afastado, e as “instituições democráticas”, que estão sendo duramente testadas na atualidade, sairão fortalecidas, apostando em saídas políticas e jurídicas para desatar o nó que amarra a vida nacional. Será?
A democracia representativa, ancorada em um sistema partidário minimamente eficaz para garantir estabilidade institucional, sobreviverá ao desfecho da crise brasileira? A luta contra a corrupção, tão apregoada como a base de uma nova cultura republicana, será consolidada? Para me arriscar neste exercício de futurologia, recorro ao passado, analisando a crise atual em uma perspectiva histórica que vem sendo pouco explorada. A crise brasileira, nesta perspectiva, envolve ao menos três dimensões que se entrecruzaram de maneira explosiva a partir de 2013.
A dimensão política
Esta dimensão, talvez, seja a mais comentada pelos analistas. Há uma unanimidade em apontar o esgotamento do chamado “modelo político” brasileiro pós-1985, baseado no “presidencialismo de coalizão”. Este modelo ensejaria a necessidade de acomodações tão amplas para sustentar a “governabilidade”, outra palavra mágica em nosso vocabulário político cada vez mais usada e abusada, que o governo de plantão, qualquer que seja, fica refém de uma aliança sem projeto e sem direção clara. Os ministérios e os milhares de cargos de confiança são distribuídos conforme as demandas destas “super-maiorias” parlamentares que formam a base do governo, comprometendo a própria racionalidade administrativa do Estado.
Desde 2003, o“toma lá dá cá” fisiológico que tem no PMDB, sempre disposto a ocupar o Estado, sua expressão máxima, foi a porta aberta para as tenebrosas transações que acabaram por modificar a essência do próprio PT. De um partido originalmente intransigente e purista, acabou por se transformar em epicentro de governos incoerentes e contraditórios com seu próprio DNA político. Se com Lula na Presidência, o governo não tinha uma natureza ideológica definida, mas tinha algum comando, dada a capacidade negociadora do ex-presidente, com Dilma, o governo foi emparedado, sem controle mínimo sobre sua base, e com risco de perder o apoio do próprio PT. A polêmica volta de Lula ao coração do poder ainda é um lance aberto, não é possível afirmar que o superministro salvará o governo Dilma e estabilizará a política nacional. Pessoalmente, aposto que não.
A esta dimensão política mais visível deve-se somar uma crise política do petismo histórico, ainda pouco compreendida diante da enxurrada de críticas de ordem puramente moral ao Partido, feitas à direita e à esquerda. O PT, em seus primeiros 15 anos, foi um partido que abusou do discurso voluntarista e moralista para criticar o “tudo que está aí” na política brasileira. Ligado organicamente a vigorosos movimentos sociais, o partido tinha influência nas ruas, mas sempre fora ruim de voto. No entanto, ainda nos anos 1990, formou uma pequena base parlamentar, sempre coerente e contundente na oposição aos governos pós-ditadura. Ao lado do PSDB (o original…), era o único partido moderno e com alguma base orgânica e ideológica no Brasil democratizado. O PT também conseguiu criar bases importantes em municípios, governando cidades pequenas, grandes e médias nas quais conseguiu implementar muitas novidades na administração e melhorar os índices sociais. Mesmo sem grande coesão interna, pois sempre foi um partido atravessado por disputas autofágicas de tendências e grupos, o PT parecia consolidado em meados dos anos 1990 como “reserva política e moral” que iria democratizar a política e a sociedade brasileiras.
O grande momento do partido veio com a eleição de Lula em 2002. Em parte, a onda eleitoral que o elegeu foi uma resposta à crise econômica da era FHC, que, salvo o bem-sucedido controle inflacionário, não conseguiu alavancar o tão prometido crescimento sustentado e a distribuição de renda. Mas a passagem de uma base de atuação política parlamentar de oposição e a experiência de governos municipais petistas pouco ajudaram o partido a construir uma estratégia eficaz para conduzir a política nacional no governo da União. O fato é que o PT nunca pensou seriamente em como lidar com a natureza fisiológica e a complexa engenharia política que sustentam o pacto federativo brasileiro, atravessado por uma mistura de interesses regionais, setoriais e corporativos que refreiam qualquer projeto mais ousado de mudança. O voluntarismo e o purismo petistas encontraram aí o seu limite, mas a habilidade, o carisma e o pragmatismo de Lula em costurar alianças improváveis manteve a “governabilidade”, mesmo fazendo os petistas históricos se contorcerem de náuseas.
O petismo no poder pouco ajudou a tornar mais nítido o espectro ideológico e delimitar os valores que estão em jogo na sociedade brasileira. É inegável que há um núcleo de valores no petismo que ainda o liga às tradições históricas de esquerda, como a sensibilidade para as questões sociais, os direitos trabalhistas e a promoção da equidade social. Mas as coalizões espúrias de governo, as alianças orgânicas com grandes empresários e a dificuldade em assumir, pelo menos, um projeto social-democrata consistente que distribua renda através de justiça tributária enfraqueceram a identidade ideológica do petismo. Resta a liderança de Lula, ainda forte no partido, mas em xeque em grande parte da sociedade.
A crise atual, em sua dimensão política, é tributária do esgotamento dessa capacidade de gerenciar politicamente os dois vetores que sustentaram a democratização: o “presidencialismo de coalizão” e a acomodação dos interesses fisiológicos que mantêm o “pacto federativo” brasileiro dentro de uma política (muito) moderada de esquerda. Sem projeto de mudança e sem comando político, o partido foi tragado pelas velhas e conhecidas práticas da vida política brasileira, com suas negociatas nem sempre legítimas e legais.
A dimensão econômica
A crise econômica é igualmente muito comentada e analisada. Depois de colher os frutos da valorização das commodities no mercado internacional, a economia brasileira se viu ameaçada diante da crise internacional que explodiu em 2008. Com dinheiro em caixa, o último ano do governo Lula ainda conseguiu evitar o tsunami, liberando créditos e subsídios e mantendo a linha mestra da política econômica dos seus dois governos, chamada por alguns de “social-desenvolvimentismo”. Dentro deste modelo, contra-face econômica do pragmatismo político de Lula, a gestão da economia deveria manter a base do Plano Real (metas de inflação, superávits fiscais primários, controle cambial), mas acrescentar-lhe outras medidas: redirecionamento do crédito subsidiado para grandes corporações e para o consumidor assalariado de baixo poder aquisitivo, aumento real do salário mínimo e transferências financeiras diretas para famílias extremamente pobres (“bolsa família”). A presidenta Dilma, que parecia realmente acreditar na sua competência gerencial, quis ir além, propondo a “Nova Matriz Econômica” que iria alavancar a indústria nacional, recuperar o protagonismo do Estado na economia, abaixar os juros e incrementar o crescimento com inflação baixa e sob controle. Mas em plena crise econômica mundial, esta política não deu certo. A resposta dos agentes econômicos não foi a esperada, o Estado perdeu capacidade de investimento e a arrecadação decrescente comprometeu o já frágil equilíbrio fiscal de um Estado que tinha um grande gasto social. A cerejinha do bolo da crise foi a Operação Lava Jato, que paralisou os grandes negócios de Estado, entre estatais e empreiteiras.
A partir do susto das ruas em 2013, que colocou o governo sob pressão e paralisou os agentes econômicos internos, a crise econômica se agravou, dando munição à imprensa de oposição para criticar a administração petista também neste campo. A resposta política ortodoxa para a crise econômica no segundo mandato de Dilma – elevar os juros para controlar a inflação crescente mas ainda sob controle – fez com que a arrecadação despencasse e com ela o crescimento econômico e a oferta de empregos. Vale lembrar que sem subsídio estatal, sem consumo das famílias e do governo não há capitalismo no Brasil.
A arrecadação em baixa comprometeu a capacidade do governo de manter o nível de gasto social, desde sempre combatido pelos liberais de plantão na imprensa e nas assessorias econômicas diversas. O pacto social lulista, que amarrou banqueiros e miseráveis sob sua liderança, tornou-se inviável. O consumo das velhas e novas classes médias diminuiu, e a distribuição de renda via incentivo ao consumo chegou ao seu limite. Como o PT jamais pensou ou propôs uma reforma tributária progressiva séria, sempre difícil diante do pacto federativo e dos interesses setoriais que mandam no Congresso, o Estado brasileiro é refém da arrecadação de impostos desiguais, gerados pelo consumo e pela tributação dos assalariados. A resposta para manter a “governabilidade” foi fiel ao receituário liberal tão criticado nos palanques eleitorais: corte de gastos e elevação de juros.
A dimensão ideológica
Esta dimensão é a menos analisada. Em uma primeira mirada, parece que estamos reeditando o eterno embate entre esquerda e direita, cujos epicentros no sistema partidário brasileiro seriam o PT e o PSDB. A transição tranquila ao final do governo FHC parecia indicar que a sociedade brasileira atingira um novo patamar de civilidade e republicanismo. Lula “paz e amor” parecia arrefecer os ímpetos de mudança voluntarista e populista qualquer preço e em troca, os setores mais conservadores aceitavam o “sapo barbudo” e a esquerda no poder, sem maiores histerias. Mas a lua de mel durou pouco. Arrisco dizer que a trégua conservadora ao petismo no poder apostava em um mandato de Lula que não conseguiria tocar o dia a dia administrativo e manter os compromissos políticos que sustentavam o pacto federativo. Mas o que se viu foi um presidente não só relativamente bem-sucedido desde o seu primeiro mandato (apesar das trapalhadas iniciais do governo no trato do Congresso Nacional) como cada vez mais popular no Brasil e no Exterior. Não por acaso, a partir de 2005, a oposição na imprensa cresceu e começaram a surgir as teses do “projeto de poder”, as denúncias de corrupção estrutural e, pior, a denúncia do “esquerdismo demagógico”, reeditando até certa histeria anticomunista que parecia enterrada sob os escombros do Muro de Berlim. Mas à época ninguém deu muita atenção para isso, a não ser os comentaristas conservadores de sempre e o andar de cima da classe média, sempre fiel à sua mentalidade oligárquica e elitista, que não quer dividir aviões com os pobres ou pagar os direitos das empregadas domésticas.
Mas à medida que a ruptura da classe média com o petismo foi crescendo, alimentada sistematicamente pela imprensa de direita, a crise ideológica ficou mais aguda. Os deslizes morais do partido e de suas lideranças deram o lastro que faltava ao discurso tosco e desconexo do conservadorismo. Permitiram que se escondesse uma crítica de fundo elitista atrás do bom combate da moralidade pública. E quem haveria de negar este bom combate, já que muitos petistas históricos tinham rompido com o partido pela mesma razão?
Mas nem só da alta classe média vive o anti-petismo. Os setores assalariados de médio porte, como os funcionários públicos de carreira e quadros técnicos do setor privado, que foram uma das bases sociais do petismo histórico, também se frustraram com o partido, não apenas por aderirem às críticas de ordem moral propaladas pela imprensa, mas também por viverem a combinação explosiva de ausência de serviços públicos de qualidade com alto custo dos serviços básicos privatizados, como saúde, transporte e educação.
A afirmação definitiva da classe média anti-petista enragé foram as jornadas de junho de 2013, levando consigo para as ruas amplos setores do lumpesinato, sempre disposto ao antigovernismo e à antipolítica, e com “carradas de razão”, com diria Chico Buarque. A partir de então, as dimensões política, econômica e ideológica da crise se entrecruzaram, formando o labirinto atual que nos parece levar ao abismo da intolerância política e da fratura social. O governo, atordoado pelas manifestações, perdeu o rumo e foi emparedado pela imprensa conservadora (desculpem a redundância) e por grupos sociais outrora moderados que aderiram ao discurso siderado da extrema direita fascistoide.
A oposição, igualmente desarvorada, tentou colher os frutos da crise, apostando na virtual implosão do PT e do petismo como expressão da esquerda parlamentar. Nesta linha, o PSDB, nas últimas duas eleições presidenciais, assumiu um feitio ultraconservador, sequestrado pela tradição do liberalismo oligárquico e elitista que domina este espectro ideológico no Brasil. A partir de 2015, as direitas ganharam as ruas e a política brasileira se tornou um jogo ainda mais imprevisível.
Futuro?
A grande contradição já percebida pelas lideranças oposicionistas é que o colapso do governo Dilma e a implosão do PT poderão levar consigo o sistema partidário brasileiro, tal como este se reconfigurou após o fim do regime militar. Se acontecer, o colapso do PT significará a ausência de uma esquerda parlamentar representativa por muitas décadas. Isto também significará a ausência de opções institucionais mediadoras entre as demandas sociais e o Estado, sobretudo aquelas oriundas das camadas muito pobres e dos pequenos assalariados. À esquerda, restarão movimentos sociais fragmentados com pautas específicas, coletivos de toda a ordem e lideranças isoladas, socialmente relevantes e politicamente impotentes, ao menos no jogo institucional. No médio prazo, o grosso do eleitorado, sem formação ideológica consistente e sem balizas partidárias claras, tenderá para a direita. Mas que direita?
Não é exagerado dizer que já há uma cultura pública autoritária e fascista que está esperando por um líder aventureiro, mas que ainda não tem expressão partidária consistente. Iludem-se os liberais dos partidos de oposição e da imprensa conservadora ao pensar que estes grupos sociais serão controláveis no futuro. O sistema jurídico de tradição liberal que, no vazio atual, se arvora como a espinha dorsal da política brasileira poderá ser novamente sequestrado pelos valores autoritários, alimentados pelos próprios liberais nos momentos de crise, diga-se, como muitas vezes ocorreu na história brasileira. Lembremos que todas as nossas ditaduras envergonhadas ou escancaradas foram prolixas em normas e decretos, assinados por eminentes magistrados. Quanto aos setores políticos fisiológicos, bem… estes sempre se arranjaram, seja em ditaduras, sejam democracias.
O projeto inicial da oposição – fazer o governo Dilma e o PT “sangrarem” até 2018 – está sendo atropelado pela radicalização anti-petista nas ruas e pela judicialização da política. Os últimos movimentos de Lula e de Sérgio Moro fizeram o jogo político sair dos palácios, para o bem e para o mal. O impeachment poderá deixar de ser uma ameaça, e efetivamente acontecer. Esta é uma variável que hoje não pode ser descartada nem garantida (nota: escrevo no dia 18 de março). A verdade é que estamos em meio a um quadro imprevisível, afastando-se cada vez mais da tradicional conciliação moderada de feição conservadora. Mas, supondo que o governo Dilma resista, e ocorra a eleição em 2018, a oposição terá alguns desafios, mesmo diante de um governo moribundo.
O primeiro é tirar Lula do futuro pleito, de preferência com base em algum fato legal, como a sua prisão ou a impugnação de sua candidatura. Sem Lula, o PT perderá lastro eleitoral e poderá se fragmentar em vários grupos partidários. Estamos vivendo o momento exato desta estratégia, ainda com desdobramentos imprevistos. Trata-se de uma estratégia arriscada, pois Lula poderá ser visto como vítima das elites, o que não é de todo descabido, sobretudo pelo eleitorado mais pobre que efetivamente decide as eleições. As pesquisas de opinião que indicam um desgaste de sua imagem ainda são precoces e estão muito distantes da campanha eleitoral de 2018, quando, se tiver palanque, Lula fará valer todo seu carisma.
O segundo é encontrar um candidato que faça convergir seus interesses, o que não está garantido dentro do PSDB, um partido hesitante com muitas lideranças em conflito. E vale lembrar que, apesar de relativamente preservados na imprensa, os tucanos também estão envolvidos em denúncias de corrupção sistêmica, o que não passará despercebido na campanha eleitoral, apesar de toda provável blindagem. Em 2018, ainda há o fator Marina, que está discretamente preservada do imbróglio político autofágico entre governo e oposição, mas poderá representar uma opção eleitoral de centro, com ares de modernidade. Por fim, há uma incógnita: para quem irá o voto da classe média ultraconservadora e pretensamente “apolítica”, que vaia até os tucanos nas manifestações de rua? Será um voto útil no PSDB ou haverá uma candidatura de extrema direita fora das baias dos partidos mais estruturados?
Para o cidadão comum minimamente formado e informado por valores progressistas que quer ver preservada a democracia em seus alicerces básicos, a sanidade pública e o bom senso político, a conjuntura brasileira atual é desoladora. O bom combate contra a corrupção que poderia unificar um grande movimento reformador se perde em críticas grosseiras e em bate-panelas que mal escondem palavras de ordem fascistas e preconceituosas. As reformas política e tributária, que poderiam ser os eixos de uma reforma efetiva de Estado, saíram de pauta ou foram distorcidas. O saudável embate ideológico entre os que pensam diferente se perde em intolerância, agressões públicas e bate-bocas improdutivos. As críticas às mazelas sociais do Brasil se perdem em análises superficiais e defesa de soluções fáceis e autoritárias.
Seja qual for o resultado desta crise, tudo indica que a já frágil democracia brasileira estará ameaçada.
*Historiador, pesquisador do CNPq e professor do Departamento de História da USP
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