De Hitler para Getúlio

Muita coisa já foi dita e escrita sobre Getúlio Vargas, o revolucionário, ditador e presidente eleito que se matou com um tiro no coração, em 24 de agosto de 1954. Seis décadas depois da tragédia,  alguns mistérios ainda pairam sobre a aura do estadista brasileiro. Um deles diz respeito a um possível presente de Adolf Hitler. Na tentativa de conquistar um poderoso aliado na América Latina, o Füher teria lhe enviado um Horch 1939 Pullman Limousine, modelo 951A, um dos carros preferidos da SS. Há mais de 20 anos, essa relíquia faz parte da coleção de Pacífico Mascarenhas, em Belo Horizonte.

Compositor, Pacífico foi o primeiro a conhecer a batida diferente do violão de João Gilberto, em 1956, na cidade mineira de Diamantina, onde ambos passavam férias. As primeiras gravações de Milton Nascimento estão nos LPs do grupo Sambacana, produzidos por ele. Seu nome está no Guinness como o artista que mais colocou canções num CD. Além da música, o principal hobby desse belo-horizontino de 79 anos é colecionar automóveis antigos. Segundo ele, foram fabricadas apenas 23 unidades do Horch modelo 951A, entre 1937 e 1940.

“O Horch era um carro muito bom e não me consta que exista outro desse tipo no Brasil. Talvez tenha algum em outro país, mas isso não é do meu conhecimento”, declara o colecionador, que expôs o exemplar uma única vez, na Brazil Classics 2006, em Araxá, sul de Minas. Consultado por e-mail, o serviço de relações públicas do August Horch Museum informa não ter nenhum carro desse modelo no acervo da instituição. Tem sim um Kabriolet, conversível, que não é tão raro. Pesquisa feita na internet dá conta de apenas outro exemplar do Pullman Limusine, que estaria na Rússia.

Muitos donos

“O Horch 951A era um carro luxuoso, competia com a Mercedes 540K, um automóvel de valor incalculável. Li outro dia que um desses seria leiloado em Miami, nos Estados Unidos.” Pacífico se refere ao Mercedes conversível que pertenceu ao Reichsmarshall Hermann Göring. “A gente fica sabendo desse tipo de relíquia por outros colecionadores, durante exposições”, declara, dizendo que chegou a ter 118 carros em sua coleção, dos quais lhe restam 30.

Antes de chegar a Belo Horizonte, o Horch em questão teve pelo menos cinco donos. O último, José Luiz, o entregou a Pacífico Mascarenhas em troca de um altar que ele havia comprado em Diamantina, da família do general Olímpio Mourão Filho – o mesmo que iniciou o golpe militar de 1964. “Esse carro também pertenceu a Francisco Barbero e foi muito usado pelo médico Lutero Vargas (filho primogênito de Getúlio). Ficou por duas décadas esquecido em uma oficina, no Rio, onde lhe tiraram o motor e outras peças”, diz Pacífico.

É sabido que até 1941, quando submarinos alemães começaram a afundar navios de bandeira brasileira no Atlântico Norte, o Estado Novo mantinha boas relações com o III Heich. O governo de Getúlio fornecia café aos nazistas em troca de armas. Em 1939, Lutero Vargas (1912-1989) foi a Berlim para se aperfeiçoar em Medicina. Em um restaurante da capital alemã conheceu sua primeira mulher, a artista plástica Ingeborg ten Haeff, com quem teria uma filha. Em 1940, o casal deixou a cidade depois que Benito Mussolini informou a Getúlio que Berlim seria bombardeada. Lutero e Haeff saíram da Alemanha em um avião pilotado pelo filho mais velho do Duce, indo direto para Roma, de onde voaram para o Rio.

Menina dos olhos

O consultor imobiliário carioca Ony Coutinho, 53, lembra que o industrial Nildo Braga, já falecido, sempre dizia que o Horch Limousine havia pertencido a Getúlio e a seu filho. Por sua indicação, o próprio Nildo, que chegou a ter dezenas de carros, vendeu peças do Horch a Pacífico. “Nildo desmontou parte de seu acervo e vendia peças de todas as marcas. Ele escrevia e falava alemão, foi muito rico e, antes de falir, conviveu na alta sociedade carioca. Foi nesse ambiente que se aproximou de Lutero Vargas”, garante Ony.

Não existem documentos que comprovem a história, mas Pacífico acredita que o Horch 915A chegou às mãos de Getúlio pela embaixada alemã. Isso na época em que o governo brasileiro já era pressionado pelos americanos para se juntar às forças aliadas. Talvez tenha sido trazido ao Brasil pelo próprio Lutero, quando saiu de Berlim. Também existem rumores de que não teria sido a primeira vez que o ditador alemão tentou seduzir o colega brasileiro com mimos desse tipo. Hitler também teria lhe enviado um Horch 830 de motor V-8, do qual ninguém tem notícias.

Além do legendário carro alemão, Pacífico Mascarenhas preserva outras preciosidades em seu galpão. A menina dos seus olhos, no entanto, é o Packard Fifteenth série Eight, de 1937, que pertenceu ao governo de Minas. Foi nele que o governador Juscelino Kubitschek levou Getúlio Vargas ao Barreiro, em Belo Horizonte, em 18 de agosto de 1954. Ao lado de JK, o presidente inaugurou a siderúrgica Mannesmann – coincidentemente de origem alemã. Foi o último ato político do “pai dos pobres”, antes de sair da vida para entrar na história.

Pioneiro dos carros de luxo

Nascido em 1868 na cidade alemã de Winningen, o engenheiro August Horch trabalhou como gerente de produção para Karl Benz, dono da Mercedes Benz. Em 1899, ele e um sócio fundaram a Horch, fábrica cuja especialidade eram os automóveis de luxo voltados para um público rico e exigente. Foi o caso do Horch 951A Pullman Limousine, que hoje pertence a Pacífico Mascarenhas. Trata-se de um carro para sete passageiros, com dois tetos solares, vidro divisor do motorista, válvula para cinco litros, 3,75 m de comprimento e o peso de três toneladas com o motor.

Depois de ser forçado a sair da empresa por questões judiciais, Horch deixou de ser dono da marca que levava seu nome e resolveu usá-lo na forma latina, Audi, que significa “ouvir”. Em 1920, sua fábrica foi vendida para a DKW. Em 1932, as marcas Horch, Audi, DKW e Wanderer formaram a Auto Union, um dos principais fornecedores de veículos para o governo nazista. Esta ficou do lado soviético no pós-guerra, passando algum tempo desativada. Em 1965, foi adquirida pela Volkswagen. August Horch já havia morrido em 1951, na cidade de Münchberg. Em sua homenagem, foi construído em Zwickau, Alemanha, o August Horch Museum. Em 2000, seu nome passou a fazer parte do Automotive Hall of Fame, em Detroit, nos Estados Unidos.

 


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