Das cerca de cem acusações contra policiais militares e bombeiros que chegam à Auditoria Militar do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por mês, a maioria é de casos de desacato à autoridade ou descumprimento de ordens de superiores, as chamadas recusas de obediências, segundo levantamento inédito da Defensoria Pública do estado. Pela legislação militar em vigor, uma ocorrência de farda mal ajeitada ou uma discussão por atraso acabam sendo julgadas com o mesmo rigor de um homicídio doloso, com penas que podem chegar a um ano de prisão.
Criadas para julgar militares que cometeram infrações ao Código Penal Militar, as auditorias militares são compostas por um juiz de direito, responsável por boa parte das análises dos casos, e por mais três oficiais militares, que podem ser chamados a compor um colegiado.
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro alerta que casos banais recebem punições severas e desproporcionais, com consequências na vida civil dos agentes, por causa da estrutura rígida de hierarquia e disciplina militares e da legislação desatualizada.
“Desacatos e recusas de desobediência são crimes que poderiam ficar na esfera administrativa, mas que, por força dos princípios da hierarquia e da disciplina militar, são levados à Justiça, o que é um equívoco e um descompasso com a evolução do direito penal”, critica o defensor público Thiago Belotti, que representa réus na auditoria militar. Segundo ele, o argumento da hierarquia e da disciplina é arbitrário e não permite a aplicação de outros princípios jurídicos, como o de menor potencial ofensivo.
“Nessas transgressões de uniforme, de uma fala um pouco mais ríspida do soldado em relação ao superior, é muito difícil conseguir uma absolvição, você pode dar uma cambalhota no plenário, eles sempre fundamentam no jargão da hierarquia e disciplina e condenam”, relata o defensor.
Penas muito severas
Belloti atuou recentemente em dois casos em que militares foram condenados por indisciplina. Em um deles, um PM foi punido por discutir com um oficial que o repreendeu por deixar a camisa por fora da calça da farda. Na outra ocorrência, um policial se desentendeu com o superior após chegar atrasado.
Nos dois casos, segundo as leis militares, a pena mínima é equivalente à de homicídio culposo, de um ano de prisão, que pode ser revertida em medidas alternativas, como serviço comunitário. O condenado, no entanto, deixa de ser réu primário e de ter bons antecedentes criminais, comprometendo inclusive a carreira na corporação.
“Ou seja, se um militar em serviço, fazendo manutenção de um armamento sem a cautela devida, dispara um fuzil e mata um companheiro de farda, um homicídio culposo, ele vai ter a mesma pena que outro que discutiu com o capitão”, compara Belotti.
Em dezembro, outro caso de prisão de um militar mostrou a desproporcionalidade do Código Militar no julgamento de indisciplina como crime, segundo o defensor público: o subtenente do Corpo de Bombeiros Mesac Eflain ficou detido no quartel após denunciar à imprensa condições precárias nos refeitórios da corporação. A instituição argumentou que o militar causou uma “percepção de insegurança em toda a população”, considerada “um ato grave”.
Eflain foi solto cerca de dez dias depois, por meio de um mandado de segurança apresentado pela defensoria à Vara de Fazenda Pública, que referendou o direito à liberdade de expressão do bombeiro. Na Justiça Militar, todos os recursos foram negados. “A prisão de Mesac foi um claro caso de perseguição e de retaliação ao direito de expressão, prova que as leis militares precisam ser recepcionadas pela Constituição.” Tanto os regimentos disciplinares no Rio do Janeiro quanto o Código Penal Militar são anteriores à Carta de 1988.
Juíza defende regimento militar
Juíza da auditoria militar há oito anos, Ana Paula Pena Barros – que é civil – reconhece que a legislação militar está desatualizada e diz que há um esforço para o arquivamento de casos como os de abandono de posto, em trabalho conjunto com o Ministério Público do Estado, responsável por apresentar as denúncias à Justiça. No entanto, a magistrada diz que episódios de “indisciplina” precisam ser analisados caso a caso.
“Não deveria chegar à Justiça o que poderia ser resolvido na hora, por exemplo, uma discussão de um militar com o outro. Agora, é diferente de um militar discutir com outro na frente de militares que são subordinados, porque um superior tem que manter a disciplina”, compara.
Para a juíza, quando uma pessoa opta pela carreira militar, “não pode mais ser vista igual a um civil”.
“Uma coisa que para um civil, um leigo, é simples, para eles, é um desrespeito. E o que segura a Polícia Militar é a disciplina”, disse.
Punição subjetiva
Ex-chefe do Estado-Maior da PM fluminense, o coronel Robson Rodrigues da Silva, atualmente na reserva, defende a reforma do marco regulatório das corporações militares e da tipificação das transgressões por indisciplina. Segundo ele, os processos tomam muito tempo das instituições e as decisões estão sujeitas a avaliações subjetivas, e não técnicas.
“Muitas vezes, o policial fica ao sabor de desejos, às vezes até sádicos, dos superiores”, critica. “Punir por punir, por orgulho de superior em relação ao subordinado, só para autoafirmação, para confirmação da hierarquia, é anacrônico e equivocado. Sou a favor de reformar todo o marco regulatório da polícia”, destacou o coronel, que após 31 anos na PM se dedica à pesquisa sobre segurança pública em um doutorado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
O bombeiro Mesac Eflain, que lidera manifestações em defesa de servidores e pensionistas do Rio de Janeiro, diz que a atualização dos regimentos militares à luz da Constituição é urgente e tende a se refletir no atendimento à população. “Essa legislação precisa ser humanizada, no sentido de trazer cidadania ao militar, de maneira que se reflita no nosso trabalho.”
Procurada pela reportagem para se manifestar sobre as regras disciplinares da corporação, a Polícia Militar do Rio de Janeiro informou que aplica o Código Penal Militar e o Regulamento Disciplinar. Já o Corpo de Bombeiros preferiu não comentar os casos e destacou que não cabe à instituição legislar sobre as normas.
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