Direitos mais que humanos

Os casos de exploração sexual infantil têm aumentado com o uso de tecnologias como a internet. E esse crime hediondo precisa ser combatido de modo agressivo e rápido em ações globais. O III Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, realizado entre os dias 25 e 28 de novembro, no Riocentro, Rio de Janeiro, mostrou-se um ótimo canal para discutir e tentar encontrar caminhos para essa batalha. Estiveram presentes cerca de 3.500 participantes, entre especialistas, representantes da sociedade civil, ongs, setor privado, além de 55 ministros de estado, 300 jovens vindos de 170 países. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu o evento sancionando o projeto de lei que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente para combater a produção, venda e distribuição de pornografia infantil. Pela nova lei, aumenta a punição para quem expuser e produzir (de quatro a oito anos de prisão), distribuir (de três a seis anos), armazenar (de um a quatro anos), fizer montagens e simulações e aliciar crianças e adolescentes (de um a três anos) para condutas relacionadas à pedofilia na internet.

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“A exploração sexual de crianças e adolescentes é muito mais que ética e moral, é quase que uma questão de vergonha da espécie humana, de praticar crimes tão horrendos”, afirmou Lula. O presidente também lembrou que no Brasil esse assunto foi tratado na Constituição de 1988 e, seis meses depois, regulamentado no Estatuto da Criança e do Adolescente. “Isso fez com que descobríssemos que é preciso uma legislação dura. Assinei essa lei aumentando a punição ao crime de pedofilia pela internet, porque uma CPI realizada no Brasil provou que são mais do que bárbaras as cenas que a gente vê na internet, feitas por gente quase rica, ou para ficar mais rica à custa da exploração de crianças e de adolescentes.” Outro ponto importante lembrado por Lula é que essa violação às crianças e adolescentes não tem cor, classe social, nem idade, e fez questão de frisar que a exploração sexual não é um problema exclusivo dos pobres. “Muitas vezes isso acontece, não por um prato de comida, mas pelo apetite de resolver o problema animalesco de quem o pratica. E é feito também dentro da classe média no mundo inteiro, por pessoas que tiveram educação, recursos. Porque há outro ingrediente além do econômico: o processo de degradação a que está submetida a humanidade.”

Com o tema “Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente e a sua Proteção contra a Exploração Sexual – Por uma Visão Sistêmica”, o evento teve como foco principal a discussão do combate das novas formas de exploração sexual, principalmente a internet e tráfico de pessoas, e a responsabilidade dos diversos segmentos da sociedade brasileira no enfrentamento dessa questão. Visando erradicar esse crime, levando em conta esse novo cenário, os países participantes assinaram um pacto internacional de proteção, “A Declaração e Plano de Ação do Rio”. O III Congresso mostrou que uma das maiores dificuldades em desbaratar essas redes de pedofilia é que elas possuem muitos tentáculos e ramificações. Isso dificulta a fiscalização do poder público nos setores envolvidos, como o hoteleiro, o de transportes, as casas de câmbio, onde crianças trocam o dinheiro, e os vôos charters para o Norte e Nordeste, utilizados, em grande parte, para promover o turismo sexual.

Shows de estilos
Promovido pelo governo brasileiro, pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), pela Articulação Internacional Contra Prostituição, Pornografia e Tráfico de Crianças e Adolescentes (ECPAT) e pelo NGO Group para o Comitê dos Direitos da Criança, o congresso teve também o apoio da Petrobras, que em 2007 destinou em torno de R$ 110 milhões para mais de 500 projetos e pretende investir R$ 1,2 bilhão em projetos sociais.

Durante os quatro dias de Congresso, um desfile de cores, estilos e diferentes culturas tomou conta do Centro de Convenções. Havia índios, africanos, asiáticos, jovens e adultos de diferentes nacionalidades com vestimentas típicas. O show de abertura foi um acontecimento à parte, um apanhado da riqueza ritmica dos estilos brasileiros. A primeira-dama Marisa Letícia também marcou presença e prestigiou a festa até o fim.

DISQUE 100
O problema da exploração sexual de crianças e adolescentes é transnacional e exige esforço integrado dos países. A meta é mobilizar uma rede social que atue em conjunto. O Disque 100 foi criado para denúncias de pornografia infantil na internet e, desde 2003, contabilizou mais de 72 mil denúncias. A partir de um convênio da Secretaria Especial de Direitos Humanos e do Ministério da Justiça com a SaferNet Brasil (associação civil de direito privado, com atuação nacional, fundada em 20 de dezembro de 2005 e voltada para o combate à pornografia infantil na internet brasileira) e a Polícia Federal o serviço recebe denúncias sobre violações dos direitos da criança e do adolescente.

Na mão certa
Fundadora da World Childhood Foundation, uma instituição criada em 1999 no Brasil, a rainha Silvia, da Suécia, foi uma das convidadas oficiais do governo brasileiro para participar do encontro. “Participar do congresso no Brasil, País onde eu cresci, tem um significado muito especial para mim. A exploração sexual de crianças tem muitas facetas, todas igualmente chocantes. É uma honra falar sobre um assunto que acompanho atentamente e com o qual estou envolvida desde o primeiro congresso, em Estocolmo, em 1996”, disse. Atualmente, a World Childhood Foundation está sediada na Suécia e tem escritórios na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. “Damos apoio a mais de cem projetos que atuam em 14 países diferentes e que já beneficiaram mais de 700 mil crianças, adolescentes, famílias, profissionais e gestores em todo o Brasil. Nosso foco é apoiar as crianças que correm maior risco.”

Um dos projetos de maior visibilidade e importância da Childhood é uma iniciativa de combate à exploração sexual de crianças nas estradas. O programa “Na Mão Certa” (www.namaocerta.org.br) lançado em novembro de 2006, criou um pacto empresarial, envolvendo três setores da sociedade para uma ação abrangente. A partir de uma ação feita com caminhoneiros de todo o Brasil, hoje o projeto já conta com mais de 400 empresas e oferece cursos para educar e transmitir conhecimento aos motoristas, para que não se tornem “clientes” e, sim, agentes de proteção. Já foram formados 128 multiplicadores em 70 empresas que passam a praticar a responsabilidade social. Os caminhoneiros são os olhos das estradas e sua parceria na defesa de crianças e adolescentes tem gerado denúncias, diminuição de abusos e, sobretudo, cidadãos mais atuantes e conscientes do seu papel social. A rainha também elogiou a criação de uma metodologia criada no Brasil que implementa um código de conduta voltado para o setor de turismo. Exemplo disso é a parceria com a Atlantica Hotels International, que em dois anos capacitou dois mil colaboradores em 60 hotéis pelo Brasil, além de divulgar a causa e mobilizar recursos para projetos. Ela acredita que o novo desafio é controlar o mundo da internet que, ao mesmo tempo, oferece maravilhosas oportunidades tanto para crianças como para adultos, mas também muitos riscos. “Devemos nos integrar nesse novo mundo e acompanhar sua utilização estabelecendo limites e demonstrando interesse. Precisamos estar sempre um passo à frente de abusadores e adultos mal-intencionados.” Na Suécia, segundo ela, há milhares de websites operados por essas redes que obtêm grandes lucros a partir da comercialização de materiais de pornografia infantil. Calcula-se que lá haja cerca de 50 mil acessos diários a esse tipo de material. Felizmente, provedores de internet estão passando a colaborar bloqueando o acesso a muitos desses sites.

Ela destacou também o trabalho realizado por governos, ongs, polícia e setor privado. “Tenho muita confiança que os governos de todos os países ratificarão o protocolo para acabar com a exploração sexual de crianças e montar as ferramentas legais necessárias para implementarmos nosso trabalho nessa área”, disse. Para a rainha é imperativo reconhecer formas inovadoras de intervenção para reduzir e finalmente acabar com a exploração sexual de crianças. E finaliza: “Negar, não encarar o problema de frente, observar passivamente, contribui para a continuidade da exploração sexual infanto-juvenil e suas graves conseqüências”.

Principais recomendações do III Congresso Mundial:

1. Os governos devem prestar informações sobre os seus planos de ação nacionais relativos ao tema da exploração sexual para o Comitê dos Direitos da Criança (CDC). Um relatório será enviado à próxima sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 2009.

2. Nos próximos cinco anos, estabelecer instituições independentes dos direitos das crianças, como ombudsman, pontos focais ou comissões em âmbito nacional voltadas para a proteção dos direitos das crianças e adolescentes.

3. Desenvolver bancos de dados nacionais com informações relacionadas à exploração sexual de crianças e adolescentes até 2009 e, até 2013, estabelecer mecanismos regionais de troca dessas informações.

4. Até 2013, estabelecer sistemas nacionais de acompanhamento e monitoramento de casos de exploração sexual de crianças e adolescentes. Esse sistema incluirá dados de linhas de denúncia e informação, bem como de serviços de apoio.

5. Os países devem aumentar o seu compromisso com a Interpol sobre o uso de imagens de abuso de crianças e adolescentes e tratar de crimes dentro de uma área especial.

6. Desenvolver políticas para estimular e apoiar o setor privado, especialmente nos setores de turismo e viagens, instituições financeiras, internet e publicidade, a adotar códigos de conduta.

7. Fortalecer e harmonizar os serviços de proteção.

8. Organismos de cooperação internacional irão, entre outras coisas, prover recursos para que os países mais pobres possam cumprir os compromissos do Pacto do Rio.

9. Introduzir leis que criminalizem a compra (ou outra forma de remuneração) de sexo com crianças e adolescentes.

UMA GUERRA CIVIL

A subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Carmem Oliveira, apresentou uma triste estatística sobre a situação da exploração sexual no Brasil. “A cada três anos morre a mesma quantidade de adolescentes e jovens que morreram na guerra do Vietnã que durou 12 anos. Esse é um estado de guerra civil”, afirma. E embora as crianças atingidas pertençam a todas as classes e etnias, a violência, de uma maneira geral, vitima mais os jovens negros da periferia brasileira. “Eles viram número no jornal – sempre ao pé da página. Não têm nome. ” Em entrevista à Brasileiros, Carmem Oliveira falou sobre alguns temas polêmicos.

Invisibilidade
“O Sistema Único de Saúde (SUS) centraliza as informações sobre óbitos no Brasil, que nos dá um mapa da violência juvenil. O problema é que esse mapa abrange apenas a faixa etária de 15 a 24 anos, agravando a invisibilidade do que acontece antes dessa idade. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos firmou um convênio com os pesquisadores que criam esse mapa para que, a partir do próximo ano, possamos resgatar não apenas o que aconteceu em 2008, mas sim os dados de outros anos, para ter um mapa real da violência contra crianças e adolescentes, que permitirá vislumbrar a dramaticidade dessas estatísticas até agora não oficiais.”

Pobreza X exploração sexual
“Não é só a pobreza que está relacionada à exploração sexual. Temos uma violência de gênero que é histórica e que coloca as meninas em situação de maior vulnerabilidade. É uma tendência que os especialistas chamam de pedofilização, ou erotização precoce. Essas meninas têm um corpo que deseja ser adolescente – ou que se mostra adolescente. Esses fenômenos estão além da pobreza e temos de ter isso em mente para conseguir estratégias mais efetivas. Temos hoje um fenômeno de encurtamento da infância. Se você não interferir nesses valores equivocados, que têm sido cultuados na contemporaneidade, corre-se o risco de não termos o resultado esperado.”

Impunidade
“No tema da responsabilização, que foi um dos eixos do III Congresso, existem algumas lacunas muito importantes. Em especial quando o explorador sexual faz parte das elites. Existe toda uma cultura judiciária que dificulta que o processo caminhe a bom termo, ou seja, da penalização desse agressor. Talvez porque a gente tenha uma imagem de que o explorador sexual no Brasil é o turista ou aquele cachaceiro que está no boteco. Uma das surpresas divulgadas na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) de 2003/ 2004 foi que existe uma rede relacionada ao crime organizado de lavagem de dinheiro (tráfico) e o envolvimento de autoridades legais. E quando no ano passado fizemos um segmento de todos aqueles casos que haviam sido indiciados, verificamos que a maioria desses indiciados estava solta. É importante que a lei avance, que as polícias trabalhem na investigação e tudo mais. Mas, principalmente, que o Judiciário aplique as leis independentemente da classe social desse agressor.”

Adolescentes no congresso
“Os adolescentes se qualificaram para o congresso participando ativamente nos painéis e com depoimentos. Procuramos fazer com que o evento também fosse um espaço de exercício de um dos direitos talvez mais esquecidos: o da participação. Contrariamos a idéia de que há uma alienação na juventude com temas sociais. Pelo contrário, tivemos quatro vezes mais jovens que no último congresso.”

Congresso verde
“Na medida do possível, fizemos um evento preocupado também com a questão ambiental. Todo o material distribuído veio de reciclagem: sacola, material gráfico e os brindes oferecidos foram confeccionados por quem trabalha com essa temática.”

Segurança pública
“O Ministério da Justiça incluiu na grade curricular de formação dos policiais do Brasil a temática da exploração sexual. Hoje, isso faz parte do currículo de formação das Escolas de Polícia que são financiadas pelo governo federal. Também temos uma participação muito efetiva da Polícia Federal, tanto no tráfico de pessoas, como no tema das investigações na internet. Recentemente, o governo brasileiro fez um acordo com a polícia montada canadense para a utilização de um software de rastreamento na internet desenvolvido pela Microsoft. E temos uma ação muito positiva da Polícia Rodoviária Federal que, desde 2003, realiza um mapeamento de pontos vulneráveis nas rodovias federais, o que permite estabelecer ações de prevenção e repressão. Algumas coisas começam a mudar dentro da própria corporação.”


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