Em nome da mãe

O escritor Marcelo Rubens Paiva - Foto: Luiza Sigulem
O escritor Marcelo Rubens Paiva – Foto: Luiza Sigulem

Eunice Paiva se preparava para ir à praia com o marido, o empresário e ex-deputado Rubens Beyrod Paiva, quando seis agentes da ditadura, com roupas civis, invadiram sua casa, no Leblon, no Rio. Convocaram Rubens Paiva para prestar depoimento. Era feriado, 20 de janeiro de 1971. No dia seguinte, levaram Eunice e Eliana, de 15 anos. Eliana foi liberada 24 horas depois. Eunice ficou 12 dias presa. Rubens Paiva nunca mais voltou. Da noite para o dia, Eunice precisou enfrentar os militares e assumir sozinha o sustento e a criação dos cinco filhos do casal. Seu primeiro passo foi estudar Direito, para trabalhar como advogada. No cotidiano, não deixava os filhos perceberem o próprio sofrimento. “Ela não queria que nós a víssemos chorando para não ficarmos em desespero em relação ao futuro”, conta o escritor Marcelo Rubens Paiva, que tem quatro irmãs e estava com 11 anos quando o pai desapareceu.

Trinta e três anos depois de lançar o best-seller Feliz Ano Velho, sobre o acidente que o deixou tetraplégico, Marcelo colocou o foco em Eunice ao escrever o livro Eu Ainda Estou Aqui. A decisão de transformá-la em protagonista se deu quando Eunice foi interditada judicialmente, com a anuência dela, por estar com Alzheimer: “Era uma injustiça uma mulher ter sofrido tanto e ser interditada exatamente no momento de curtir sua aposentadoria no Rio, para onde ela tinha voltado”. Eunice vive agora em São Paulo, no mesmo condomínio de apartamentos em que Marcelo mora com a mulher, Silvia Feola, e o filho Joaquim, de um ano e seis meses. Por causa do Alzheimer, ela já não acompanha a política do País. Marcelo, em contrapartida, segue de perto os principais movimentos, inclusive aqueles que pedem a volta dos militares ao poder: “A molecada não sabe o que aconteceu. Está reproduzindo twitters de 140 caracteres com ideias que são verdadeiras aberrações da história”.

Brasileiros – O que você sente quando vê manifestante pedindo a volta dos militares?
Marcelo Rubens Paiva – Uma das razões para escrever esse livro é que as pessoas não sabem o que foi a ditadura. É um erro já cometido em 64, quando os grandes jornais, a igreja, a UDN e alguns governadores pediram a intervenção militar para acabar com o que eles achavam ser a baderna do governo Jango. A ameaça comunista foi uma das grandes bandeiras dos golpistas. Não perceberam que, ao abrirem as portas dos quartéis e deixarem os militares tomar as ruas e os palácios, eles não sairiam mais de lá. Então vieram as cassações. Logo depois, Juscelino (o ex-presidente Juscelino Kubitschek) foi cassado. Anos depois, Lacerda (o governador da Guanabara, Carlos Lacerda), um grande aliado dos militares, também foi cassado.

E eleições presidenciais estavam marcadas para 1965.
Pelas pesquisas do Ibope, Juscelino ganharia fácil. Acabaram com as eleições. A coisa foi acontecendo de um jeito que, depois do AI-5, todos aqueles que conclamaram os militares para tomar o poder começaram a fazer oposição ao regime. As pessoas não sabem que isso já aconteceu e não deu certo? Os militares foram chamados para depor Getúlio (o ex-presidente Getúlio Vargas, em 1945 e 1954). A partir de 64, eles se enfiaram em todos os setores da economia. No futebol, o técnico da seleção era um capitão, o Coutinho. Na ECA, a faculdade onde estudei na USP, o diretor era um capitão de mar e guerra. Os militares estavam também na Petrobras.

“Fui imediatamente interrompido, de forma muito violenta, pela apresentadora do programa. Aí cortaram a entrevista e me expulsaram do estúdio da Jovem Pan

Pessoas que viveram esse período também seguraram cartazes pedindo a volta dos militares.
Será que não perceberam que é melhor enfrentar uma democracia em crise do que uma ditadura estável? Estável entre aspas, porque fica estável por meio da violência, da tortura e do medo. Por outro lado, minha família, que é a vítima exemplar de tudo de mal que aconteceu durante a ditadura, está aí, viva, sofrendo. Tenho uma irmã deprimida. Minha mãe tem problemas até hoje.

A irmã que foi presa é a que está deprimida?
Não. Eliana, a que foi presa junto com minha mãe, está ótima. Faz parte de um grupo atendido pelo psiquiatra Moisés Rodrigues.

É o projeto Clínicas do Testemunho, da Comissão de Anistia, que presta assistência psicológica a vítimas da ditadura.
Esse grupo é sensacional. Tenho outra irmã, que mora na Suíça, que está deprimida. O ano de 2014 foi um ano muito forte para minha família, por causa de todas as revelações do caso Rubens Paiva, da Comissão da Verdade, do busto inaugurado em frente ao Doi-Codi. Essa minha irmã estava no Brasil passando férias. E reacendeu nela uma angústia que estava adormecida havia décadas. Isso me motivou a escrever o livro, assim como esses cartazes, essas manifestações, essa ignorância em relação ao que foi a ditadura.

O que deve ser feito?
Acadêmicos, escritores, jornalistas, intelectuais precisam se esforçar mais para contar essa história de uma forma didática, que seja implementada nas escolas. A molecada não sabe o que aconteceu. Está reproduzindo twitters de 140 caracteres com ideias que são verdadeiras aberrações da história.

E, no geral, como você está lidando com o crescimento da direita no Brasil?
Não tenho pânico. É até importante ter um movimento de direita para se discutir a volatilidade da democracia, de como a gente precisa ter um Estado democrático sempre atuan­te. Mas me surpreende, inclusive amigos meus, nas redes sociais, com posturas ideológicas que não se imaginava.

Você se afastou de pessoas por causa disso?
Sim. Como todo mundo. Ou, se não me afastei, deixei de conviver. Não cheguei a tirar do Facebook, mas fico indignado, com uma vontade de responder! Mas não respondo. Deixo a pessoa ter o direito de ter a sua opinião reacionária exposta.

É uma discussão inútil?
Eu acho. Só para ter uma ideia, fui à rádio Jovem Pan, para dar uma entrevista das quatro às seis da tarde. Ao chegar na rádio, fui superbem-recebido. É uma rádio que adoro, primeiro porque era a que eu escutava, por morar ali perto. Adorava o Zé Silvério, “É gol, que felicidá-a-de” (canta). Comecei a dar a entrevista, falando do livro e tal. Entrou um músico chamado Boca Nervosa e começou a cantar um samba absurdo que dizia que Haddad (o prefeito Fernando Haddad) pegava helicóptero para ir para o trabalho enquanto as pessoas não conseguiam andar na Marginal, porque ele tinha baixado a velocidade. Também falou mal de ciclovia. Quando acabou, me perguntaram o que eu achei da música. Disse que a sátira política é sempre bem-vinda, mas que Haddad não pega helicóptero. Todo mundo sabe disso. Fui imediatamente interrompido, de forma muito violenta, pela apresentadora do programa, chamada Madeleine (Madeleine Lacsco): “É porque você não mora na periferia”. Não tinha nenhuma relação entre uma coisa e outra. Aí cortaram a entrevista e me expulsaram do estúdio. Algumas pessoas perceberam e começaram a twittar, mas não alimentei isso.

“Ele era um psicopata. Foi esse Burnier quem prendeu meu pai. Tem a suspeita de que ali começou uma vingança pessoal entre um velho golpista e um jovem deputado cassado”

Em Ainda Estou Aqui, você escreve sobre episódios que aconteceram há mais de 40 anos. Foi difícil escrever sobre eles ou isso já não é problema?
Eu sou profissional. Era um problema para mim no Feliz Ano Velho, tanto que eu escrevi pouco sobre meu pai. Estava querendo escrever sobre meu acidente, sobre minha vida. Mas não foi fácil. Literatura é técnica. É um romance técnico, narrativa, capítulos e pontos de virada. Tem um escritor e tem o homem Marcelo Paiva juntos.

Você considera o livro um romance?
Considero. Engraçado é que esteja na categoria de não ficção. Para mim, a técnica dele é de romance, de pontos de virada, de curva dramática. Técnica de misturar estilos, me colocar na cabeça do meu pai, de me colocar na cabeça da minha mãe, de não ter uma ordem cronológica. Tudo isso foi pensado com técnica de escritor.

Quando planejou o livro, sua mãe era a protagonista ou era sobre Rubens Paiva?
Sempre minha mãe como protagonista. Comecei o livro com aquela cena em que eu vou com a minha mãe ao Fórum João Mendes para interditá-la. O Alzheimer está começando, mas ela ainda está lúcida.

Com a anuência dela?
Com a anuência dela. Ela escolheu os advogados. Ela conversou com o juiz. Foi toda bonitinha, simpática. E o juiz foi bastante gentil com minha mãe. Isso foi importante.

Há uma cumplicidade entre profissionais do meio jurídico.
Ele falou: “Vejo aqui que tem uma colega bacharel”. Eu fiquei muito impressionado quando ele decretou que eu era responsável jurídica e criminalmente por ela. Pensei imediatamente em escrever um livro sobre o caso da minha mãe. Da injustiça que era uma mulher ter sofrido tanto e ser interditada exatamente no momento de curtir sua aposentadoria no Rio, para onde ela tinha voltado, no Selva de Pedra.

Selva de Pedra?
É um condomínio enorme, com uns 20 prédios, no coração do Leblon. Em 68, era a Favela do Pinto, a duas ou três quadras da casa onde morávamos. A favela pegou fogo e houve a suspeita de incêndio provocado, porque na noite anterior tinham sido vistos helicópteros. Uma coincidência incrível porque tinham acabado de inaugurar a Cidade de Deus. Tanto que a primeira cena do filme Cidade de Deus mostra pessoas chegando na nova moradia com bonecas chamuscadas. Com o incêndio, toda a população que morava na favela foi retirada. Em seguida, construíram esses 20 prédios, vendidos para militares, que pagavam do soldo. Com o tempo, os militares foram vendendo os imóveis. Alguns ainda moram lá. E minha mãe comprou apartamento justamente nesse local.

Ela conhecia a história?
Sim. Era um lugar ótimo, com uma vista linda, muita segurança e o preço estava OK. Até hoje os bandidos morrem de medo de passar perto porque tem muito militar. É um dos melhores lugares para se morar no Rio. Em 2000 ela já estava passando mais tempo no Rio, vindo a São Paulo porque tinha ações na cidade. Em 2005, começou o Alzheimer. Ela passou a ter dificuldade para comprar passagem, pegar avião.

No caso do seu pai, você acredita que ainda pode ser feito algum tipo de justiça?
Não é que eu acredite. Acho que deve ser feita. Não faz sentido o assassino do meu pai morar em Botafogo, na rua Marquês de Abrantes.

Você está se referindo ao general Nogueira Belham?
Sim. Ele comandava o Doi-Codi do Rio.

O envolvimento do general com o caso Rubens Paiva foi comprovado em documentos encontrados na casa de outro militar, morto em Porto Alegre. Como você ficou sabendo?
Não me lembro agora, inclusive porque a minha irmã que está deprimida é que foi para Porto Alegre. Na casa dele foram encontrados muitos documentos sobre o caso Riocentro e alguns documentos sobre o meu pai. Um deles lista os bens do meu pai quando ele chegou ao Doi-Codi. Em cima de uma caderneta estava escrito, à mão: “Entregar para o Belham”. E o Belham sempre disse que naquele período ele estava de férias. Depois, encontraram comprovantes das diárias que o Belham recebeu naqueles dias. Com isso, contestou-se a versão dele de que ele estava de férias e não sabia de nada.

Você tem alguma ideia de por que ele despertava tanta raiva a ponto de ser morto?
Tem o fato de ele ter sido o relator da CPI que investigou em 64 o dinheiro que os americanos deram para os institutos que fomentavam o golpe, como o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática). A CPI descobriu quais deputados tinham recebido dinheiro do governo americano, para fazer uma frente contra João Goulart. Tem o dinheiro que Golbery (o general Golbery do Couto e Silva) recebeu do IPES, o instituto de pesquisa que tinha um escritório com 300 funcionários no Rio de Janeiro para fazer propaganda sobre a “ameaça comunista” no Brasil. Meu pai, junto com Almino Affonso (então deputado federal pelo PTB), descobriu esses cheques e chamou os generais que eram financiados pelo governo americano. Com o golpe, meu pai foi cassado. Quando ele foi preso, o Burnier (o brigadeiro João Paulo Burnier) já olhou para ele e falou: “Ah!”. O Burnier era um golpista antigo. Tentou derrubar Juscelino.

E quis explodir o Gasômetro do Rio, o que provocaria milhares de mortes.
Ele era um psicopata. Foi esse Burnier quem prendeu meu pai. Tem a suspeita de que ali começou uma vingança pessoal entre um velho golpista e um jovem deputado cassado. Tem também o fato de meu pai ter recebido cartas do Chile. Uma delas era de agradecimento, de Heleninha Bocayuva, filha de seu melhor amigo. Ela tinha fugido do Brasil com a ajuda de meu pai, porque estava envolvida no sequestro do embaixador americano (Charles Burke Elbrick). Um dos torturadores fala ainda do interesse do Doi-Codi em descobrir como era a rede de informantes que distribuía relatos sobre torturas e informes das organizações armadas.

No livro, você diz que sua mãe nunca perdoou a negligência de parte da esquerda. No envelope de uma das cartas, tinha o nome Rubens e o telefone de sua casa. Bastou um telefonema para a repressão descobrir o destinário.
O amadorismo é parte da época. Minha mãe não perdoou, mas o inimigo dela era a ditadura. Eram os militares. Nunca foram os militantes. Para todo mundo que foi preso, tem alguém que denunciou. É muito difícil culpar alguém pela morte de outrem, porque se não caía de uma forma, cairia de outro. Não podemos agora ficar discutindo se estava certo ou errado. Aconteceu. Claro que estava errado. Pensar em derrubar um governo brasileiro com a luta armada era desproporcional. Minha mãe tinha vários motivos para desgostar da esquerda armada.

E do próprio envolvimento de seu pai com a resistência à ditadura.
Houve uma certa irresponsabilidade. Ele deveria ter ido para o exílio. O Fernando Gasparian (empresário e político, amigo de Rubens Paiva) foi para o exílio. Ele chamou meu pai. Avisou que eles estavam muito visados, que o momento era perigoso.

Em um dos momentos mais tocantes, você imagina o que seu pai sentiu ao ser preso, de ser responsável por colocar vocês em risco.
Exatamente. Acho que deve ter passado pela cabeça dele: “Que cagada. Subestimei o poder dessa turma, a violência dessa turma. Achei que comigo não fosse acontecer”. Como não aconteceu com o Baby Bocayuva, o pai de Heleninha, que foi preso, mas não foi torturado. Como aconteceu com outros. O Cony (o jornalista Carlos Heitor Cony) foi preso seis vezes. Nunca foi torturado.

“Acho que deve ter passado pela cabeça dele: ‘Que cagada. Subestimei o poder dessa turma, a violência dessa turma. Achei que comigo não fosse acontecer’”

No livro, você menciona os Catarinas, soldados de dois metros de altura.
Foi uma liberdade poética. Não tenho a menor ideia do que aconteceu com meu pai. A gente ouviu falar que ele xingava os militares. Eu não sei se minha mãe e minha irmã foram presas para pressioná-lo. Nem sei se ele chegou a vê-las. Ou se elas foram levadas apenas para reconhecer fotos. Eles queriam fazer conexões, saber quem frequentava minha casa. Minha mãe ficou presa 12 dias.

Ela nunca contou para você em detalhes o que aconteceu?
Com minha mãe não aconteceu nada. Ela ficou no fundo da cela. Era chamada eventualmente para ver fotos. Minha irmã também.

E a história do soldado que devolveu a ela a crença na humanidade?
O soldado deu um chocolate para ela. E falou que achava tudo aquilo errado. Uma vez, uma testemunha me ligou. Era um dos soldados que estavam lá. Ele morava em Guaratinguetá. Queria falar comigo, mas teve um derrame um dia antes, essas histórias de sempre.

Em outro trecho, um amigo seu propõe vingar os assassinos de seu pai. A ideia de vingança nunca passou por sua cabeça?
Não. Sou da paz, da não violência. Na escola, lia Sidarta (de Hermann Hesse), Gandhi. Nasci em outra geração. A melhor vingança é a democrática, apesar de não ter ocorrido efetivamente.

Que tipo de condenação você deseja?
Alguns já foram bem condenados com Feliz Ano Velho. Os netos do Buzaid (o ex-ministro da Justiça Alfredo Buzaid) cobraram a posição dele: “Como você fez isso?”. Buzaid era amigo de minha família. Ele disse para meu avô e meu tio que estava tudo OK. Falou que meu pai tinha levado uns safanões, mas estava se recuperando e que logo, logo, seria solto.

Ele podia estar mal informado.
É o que minha mãe acha, mas como é que o ministro da Justiça fica mal informado? Acho que ele falou isso para tirar minha mãe do Rio. Ela estava dando entrevistas, recebendo em casa muitos correspondentes estrangeiros. Tinha saído no The New York Times e em tudo quanto é lugar.

Mesmo porque seu pai tinha sido fonte desses jornalistas, não é mesmo?
Exatamente. Os correspondentes estrangeiros da América Latina moravam no Rio e Raul Ryff, que era um grande amigo do meu pai, era contato de todos eles. Então os militares queriam tirar minha mãe do foco. Diziam que só soltariam meu pai se ela saísse do Rio. Isso uma vez ela me contou. Aí a gente se mudou para Santos, mas nada aconteceu.

Existiu por muito tempo a expectativa de seu pai aparecer?
Para minha mãe, eu não sei. Cada um vivia a esperança a sua maneira. A minha durou uns dois anos. Minha irmã Veroca é que detectou uma vez que cada um da família teve um período de luto. Eu tinha 11 anos de idade. Era uma criança. Não sei quanto durou o luto de minha mãe. Não tem uma data clara. Recebíamos informações de que ele estava morto, mas outras fontes diziam que ele estava vivo.

A imagem que tenho de sua mãe é a de uma pessoa superdiscreta. Em alguns trechos do livro, você chega a ser impiedoso com ela. Se ela não tivesse com Alzheimer, você descreveria determinadas cenas com tantos detalhes?
Na literatura, no teatro, a gente tem que ir fundo. Aprendi isso com Antunes Filho. Não deixar para amanhã o que quer dizer hoje. Já que no livro vou falar sobre minha mãe, não posso inventar uma personagem que não é real. E acho que sim, aí entra um pouco a maldade do escritor, de me aproveitar dos conflitos dramáticos dela e transformá-la em uma personagem viva e real. Foi minha interpretação sobre minha mãe. Então, é um narrador…

Não confiável.
Não confiável porque sou filho. Traço um retrato de uma pessoa fria porque ela é uma viúva de 40 anos com cinco filhos. Era a única responsável pela família, sendo que não tinha nem documentos para abrir o inventário do marido. A frieza e a objetividade dela eram quase justificáveis. Não a culpo de nada. Prefiro uma mãe empreendedora, porque juntou um patrimônio bastante razoável, do que o contrário.

Parte desse patrimônio está sendo usada agora para cuidar dela?
Exatamente. Hoje é o inverso. Eu sou o empreendedor da vida dela e o patrimônio que ela juntou é que nos ajuda a cuidar dela. O livro tem essa curva dramática. Eu começo falando dessa frieza, dessa pouca italianice dela, mas, ao final, mostro como ela tem afetividade. Acho que minha mãe se emociona quando me vê, se emociona quando vê meu filho.

Quando pega na sua mão?
Outro dia, na piscina, alguém comentou a cena que eu descrevi no livro de ela repetir os movimentos que fazia em minha mão quando sofri o acidente. Eu então coloquei a mão no colo dela e ela começou a esticar meus dedos, um por um. A minha mão ainda é um pouco fechada, mas era muito mais na época do acidente, quando eu precisava fazer esse exercício.

Você também escreve sobre uma reação dela ao ver a imagem de Rubens Paiva na televisão.
Por alguns momentos, ela o reconheceu. Viu na tevê e chamou: “Olha! Olha!” Depois, ficou repetindo: “Tadinho, tadinho”. Mostro que existe ali uma pessoa sensível. Depois que se aposentou, ela se libertou um pouco da responsabilidade de ser a viúva de Rubens Paiva. Da mesma forma quando pegou o atestado de óbito, em 96, e quando o Fernando Henrique a chamou para a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Ela pediu afastamento da comissão por não aguentar ver casos de tortura de outras famílias. Quando eu conversei com ela sobre o porquê de ela ter sido presa, ela chorou na minha frente como eu nunca tinha visto. Depois, acho que ela não foi mais a mesma. Ela se deu o direito de ser uma pessoa com conflitos. A gente nunca via minha mãe chorando. O que ela dizia para minha irmã era que não queria que nós a víssemos chorando para não ficarmos em desespero em relação ao futuro.

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução


Comentários

2 respostas para “Em nome da mãe”

  1. Avatar de Chico de Paula
    Chico de Paula

    Maravilhosa essa entrevista com o Marcelo Rubens Paiva. Me fez sentir uma grande vontade de ler o livro e conhecer mais essa história.

  2. Avatar de Wander Nunes Frota
    Wander Nunes Frota

    Muito interessante essa entrevista com o Marcelo! Li o seu _Feliz ano velho_ na época de seu lançamento e depois não li mais nada seu, só umas crônicas publicadas nos jornais. É uma história de vida meio complicada a desse casa, q ficou paraplégico justamente qdo jovem e promissor artista (tocava violão). Sua mãe foi/é uma guerreira e tanto; sacrificou-se pra terminar de educar seus filhos após a ausência repentina do pai — e só por isso já mereceria um prêmio de mulher corajosa! Enfim, parabéns ao Marcelo, aos seus irmãos e sua mãe q atravessaram juntos esse mau bocado da ditadura! Q ela não se repita JAMAIS em lugar nenhum!

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