“Empresas não olham para classes D e E como core business”

À frente do setor sugestivamente batizado Oportunidades para a Maioria, o executivo brasileiro Luiz Ros, gerente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), acompanha de perto 40 projetos, em 18 países da América Latina. Ao todo, a instituição já liberou US$ 250 milhões para as iniciativas, por considerá-las bem-sucedidas na tarefa de melhorar as condições de vida da população que forma a chamada base da pirâmide social. Não se trata de programas sociais. Pelo contrário, a verba financia muitas iniciativas de grandes empresas, que aproveitam o seu potencial econômico, ou a capilaridade de suas redes, para atender melhor ao público e dar acesso a produtos e serviços de alto valor social.

No próximo dia 26 de outubro, Ros deixará seu escritório em Washington para apresentar o portfólio de projetos do BID aos convidados do seminário Inovação: Novas Forças do Mercado Brasileiro, que a revista Brasileiros e sua divisão Seminários Brasileiros realizam em parceria com a consultoria Plano CDE. Em entrevista, o executivo, que também participou da organização do evento , explica como o setor privado pode, e deve, colaborar com o processo de mobilidade social em curso na América Latina.

O setor privado conseguiu definir o seu papel nesse contexto de ascensão social de parte da população das camadas mais pobres da sociedade?
As empresas ainda olham a relação com esse público não como core business, mas como responsabilidade social. O seminário vai mostrar formas de usar as forças de mercado para trazer o setor privado para cumprir uma agenda que é de toda a sociedade, mas tem sido ocupada quase exclusivamente pelo governo e por entidades não-governamentais. O desafio é fazer com que as empresas percebam que essa visão de inovação é algo de longo prazo e de alto impacto social.

Há empresas que já conseguiram mudar a maneira de ver o novo mercado?
A mexicana Cemex, até os anos 1990, concentrava as vendas apenas em grandes clientes. Mas percebeu que a população estava construindo suas casas saco a saco de cimento. Então alguém se perguntou: será que se a gente ajudasse as famílias a se planejarem, elas não consumiriam ainda mais? Foi criado o programa Patrimonio Hoy, que ajuda as pessoas a fazerem obras com velocidade maior e economia de 30%. Deu certo, e a Cemex lançou o programa Mellora tu Calle, que faz a pavimentação de ruas. É um serviço pelo qual o Estado deveria pagar, mas isso levaria 10, 15 anos. E o povo percebeu que o custo de oportunidade de não ter pavimentação na rua é muito mais elevado. O valor da casa é mais baixo, a coleta de lixo não acontece, as crianças brincam na rua e adoecem. Então as famílias contribuem semanalmente, por 70 semanas, e a prefeitura entra com 50% do custo. A Cemex faz o trabalho de pavimentação.

Como o BID participa desses programas?
Damos garantia parcial de crédito, para dividir o risco com a empresa. Havia o risco de que, uma vez pavimentada a rua, as famílias não pagassem mais. Por isso o BID entra com a garantia parcial de crédito. Mas operação se deu ao trabalho de entender a dinâmica social. Ao entender a base da pirâmide, percebemos que a inadimplência é menor.

O crédito também pode ser oferecido diretamente à população?
As empresas, em muitos casos, levam o microcrédito à população. Oferecemos crédito solidário (em que os tomadores de empréstimos são reunidos em grupos e assumem a responsabilidade pelo pagamento das dívidas de todos), e usamos modelagens inovadoras para mobilizar a sociedade. Isso ajuda a empresa a se posicionar junto a esse novo público. O Brasil ainda não tem nenhum trabalho parecido. Por que um grupo como o Votorantim, por exemplo, não usa uma dessas modelagens?

Quais outros serviços podem ser oferecidos por grandes empresas?
Na Colômbia, as utilities (empresas de serviços públicos) oferecem crédito a clientes não bancarizados. Afinal, essas empresas têm uma relação de longo prazo com os clientes, e conhecem a história creditícia de cada um deles. Sabem quem é bom pagador. Em Medelin, uma empresa descobriu que 60% de seus clientes eram não bancarizados. Emprestamos US$ 10 milhões para a empresa repassar a famílias, para a compra de eletrodomésticos mais eficientes, para reduzir a conta de luz. E também para fazer melhorias em suas casas, que são o ativo mais importante que uma família pode ter. Como não são bancarizados, têm de se utilizar do fluxo diário de dinheiro, ou recorrer a agiotas, o que é um absurdo. Fechamos parcerias com empresas de material de construção e demos cartões às pessoas. O dinheiro não passa pela mão de ninguém. É difícil também manter sistemas de coleta de pagamento, mas as utilities já têm isso. O pagamento é feito na conta de serviços básicos. Um programa novo na Colômbia irá oferecer também crédito educativo.

A sua divisão não tem nenhum programa em andamento no Brasil?
No Brasil, há os casos da Tenda Atacado, e também o do banco Gerador, que é um modelo muito legal. Costumamos dizer que é difícil servir a base da pirâmide com escala porque ela tem uma história creditícia escondida, que não é compartilhada. O programa do banco Gerador consiste basicamente em chegar até os mercadinhos de bairro a partir dos distribuidores, que sabem quem são os bons clientes. E o dono do mercado também compartilha quem são seus bons clientes. A história creditícia que estava guardada com os distribuidores desvenda a história dos que compram no mercadinho. Assim, o programa levanta o véu de assimetria de informações, o que permite remunerar e apoiar os bons pagadores, que em qualquer economia de mercado são beneficiados por juros mais baixos.

Em teoria, as grandes empresas investem mais em inovação, e seriam portanto as mais capacitadas a descobrir novos modelos de negócios e ganhar escala. Por que isso não acontece?
Existe uma dicotomia nas grandes empresas, sobretudo nas áreas de pesquisa e desenvolvimento, os PhDs estão focados nos produtos para o topo da pirâmide. Temos de colocar para eles não os problemas do primeiro mundo, mas do segmento da base da pirâmide. Traduzir os desafios das comunidades para que os cientistas pensem em soluções que atendem a grupos de baixa renda. O desafio é fazer com que eles não olhem só para os mercados que já estão saturados, e se voltem para o que chamamos de blue oceans, mercados que estão aí para ser ocupados, mas não se sabe bem ainda se os produtos vão funcionar, ou como distribuir. Várias empresas estão olhando novos modelos como o leasing de maquinário usado para empresas de pequeno porte, que são capazes de realizar a manutenção e fazê-los funcionar por mais cinco anos. O desafio é fazer o discurso de modelos de negócios com alto impacto social.

E essa é a missão do seminário…
Por que o seminário? Minha primeira tarefa no grupo era montar um portfólio de negócios para poder mostrar. Há cinco anos, não poderia dizer que tinha financiado 40 operações em 18 países, e liberado US$ 250 milhões em crédito. Inclusive em países como o Haiti, onde temos o case de uma empresa de seguros. A ideia é trazer para o seminário casos reais. Construímos um portfólio robusto e vamos começar um Road show por vários países para promover os negócios. Não é sobre vender mais, mas mostrar que o setor privado pode juntar forças e usar a inovação para encontrar soluções para problemas grandes e ganhar em lucro e escala.

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