As manifestações pedindo o impeachment da presidente Dilma Rousseff reuniram neste domingo cerca de 1,8 milhão de pessoas em todo o País, segundo estimativas das Polícias Militares. A maior delas, realizada na avenida Paulista, concentrou mais de 450 mil pessoas às 16 horas, de acordo com o Datafolha, e atraiu os três presidenciáveis do PSDB – os senadores Aécio Neves (MG) e José Serra (SP), e o governador paulista Geraldo Alckmin–, além da senadora Marta Suplicy (agora no PMDB-SP) e diversos deputados federais.
O esforço da oposição para surfar nas manifestações, contudo, não rendeu o esperado. Alckmin e Aécio acabaram hostilizados pelos manifestantes na Paulista – foram chamados de “bundões”, “oportunistas” e alguns palavrões mais pesados — e preferiram ir embora. Marta foi chamada de “perua” e “vira casaca” e saiu. O Palácio do Planalto respirou aliviado porque não ocorreu nenhum incidente violento, mas a magnitude dos atos surpreendeu.
As Polícias Militares fizeram as seguintes estimativas: 160 mil em Curitiba, 120 mil pessoas em Recife, 120 mil em Vitória, 100 mil pessoas em Brasília, 100 mil pessoas em Porto Alegre, 50 mil em Goiânia, 40 mil em Cuiabá, 30 mil em Belo Horizonte, 25 mil em Maceió, 25 mil em Manaus, 20 mil em Salvador, 10 mil em Aracaju, 9.000 em Natal, 4.000 em São Luís. A PM do Rio de Janeiro não fez cálculos. O ato na Paulista, segundo o Datafolha, foi o maior já registrado na cidade, superando inclusive os grandes comícios das Diretas-Já, em 1984.
O movimento voltou a ganhar força. Até então, a adesão aos protestos vinha declinando. Na Paulista, o maior público tinha sido registrado em 15 de março de 2015: 210 mil pessoas. A participação caiu nos atos subsequentes (100 mil em 12 de abril, e 135 mil em 16 de agosto) até atingir 40 mil pessoas no dia 13 de dezembro – ainda menos do que a da manifestação em defesa do governo, promovida três dias depois: 55 mil pessoas, segundo o Datafolha.
Desta vez, porém, a coalizão anti-Dilma contou novamente com uma imensa cobertura midiática, que envolveu até a antecipação do horário de jogos de futebol – tal como já havia sido feito em março do ano passado. Durante todo o domingo a televisão mostrava, a cada intervalo de sua programação, flashes dos protestos nas principais capitais do país, que contaram com a participação de muitos artistas da própria emissora.
Mas os meios de comunicação não operaram no vazio: eles vêm ecoando, todos os dias, uma série de ações da Operação Lava Jato focadas no governo Dilma e no de seu antecessor.
A escalada começou no dia 22 de fevereiro, quando o juiz Sergio Moro ordenou a prisão do publicitário João Santana. Uma semana depois, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, anunciou sua saída. No dia 3 de março a revista IstoÉ publicou trechos selecionados de uma suposta delação ainda não homologada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) do senador Delcídio do Amaral (PT) com acusações contra Dilma e Lula e, no dia seguinte, o ex-presidente foi levado coercitivamente para depor no Aeroporto de Congonhas, enquanto seu apartamento e o instituto que leva seu nome eram vasculhados pela Polícia Federal.
No último dia 9, o plenário do Supremo Tribunal Federal proibiu o novo ministro da Justiça, Wellington Lima e Silva, de acumular o novo cargo com sua carreira no Ministério Público – o que até então era uma prática comum na administração pública no país—, e o Ministério Público do Estado de São Paulo pediu a prisão preventiva de Lula, mas com uma argumentação jurídica tão inconsistente que provocou protestos inclusive de defensores do impeachment.
A fragilidade do governo pode ser medida pelo comportamento de seu principal aliado, o PMDB: a cúpula do partido no Senado – que até agora vinha sustentando Dilma—se reuniu com os senadores do PSDB para discutir uma “saída para a crise”, que envolveria a aprovação de um projeto do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) de implantar o parlamentarismo no Brasil. A ideia foi sugerida pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e recorda o compromisso adotado em 1961 para remover as resistências de militares à posse do vice-presidente João Goulart (PTB). A experiência fracassou, e o presidencialismo foi restabelecido.
Em sua convenção nacional, neste sábado, o PMDB decidiu adiar qualquer decisão sobre o rompimento com o governo Dilma. Recebido aos gritos de “Brasil para a Frente, Temer presidente”, o vice-presidente Michel Temer foi reconduzido ao comando da legenda com 96% dos votos e anunciou, num discurso enigmático, que os peemedebistas estão prontos para “resgatar os valores da República e reencontrar a via do crescimento econômico”.
No encontro, marcado por discursos inflamados exigindo o rompimento com o governo, o PMDB proibiu que seus filiados assumam novos cargos na administração federal – o que acabou barrando a nomeação do deputado federal Mário Lopes (PMDB-MG) como novo ministro da Aviação Civil. Ainda no sábado, Temer ofereceu carona, no avião da Vice-Presidência, a um colega de bancada que pretendia participar do protesto na av. Paulista.
Sob pressão, Dilma agora terá de enfrentar a retomada do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, o que só deve ocorrer depois que o Supremo Tribunal Federal julgar os recursos contra a decisão da corte que definiu a tramitação do pedido, no próximo dia 16. “Vamos continuar resistindo na luta pela manutenção do governo”, disse no domingo o líder do governo no Senado, Humberto Costa (PT), ao jornal Folha de S.Paulo.
A crise parecia que tinha amainado
A ofensiva do Judiciário e do Ministério Público provocou um súbito recrudescimento da crise política, que até então parecia adormecida. No dia 17 de fevereiro, o governo havia conseguido derrotar o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, na disputa pelo controle da liderança do PMDB: Leonardo Picciani foi reeleito com 37 votos contra 30, em votação secreta.
No plano econômico, começaram a surgir as primeiras boas notícias: em janeiro, a produção industrial cresceu 0,4% no Brasil em relação a dezembro – no Estado de São Paulo, a alta chegou a 1,1%. As exportações brasileiras tiveram um aumento real de 4,6% em fevereiro, com um aumento de 10% na venda de produtos industrializados. As chuvas elevaram o nível dos reservatórios no país, o que permitiu a redução nas contas de luz. Por fim, a inflação começou a ceder: passou de 1,27%, em janeiro, para 0,9%, em fevereiro.
Embora tais notícias sempre recebam pouco destaque nos meios de comunicação, os sinais de melhora na economia vinham tendo certo impacto sobre os ânimos da população: a rejeição ao governo Dilma diminuiu de 71%, em agosto do ano passado, para 67% em novembro, e depois para 64% no mês passado. O apoio ao impeachment também caiu, para 60%.
No Congresso, a radicalização também havia diminuído um pouco. Com a substituição do deputado federal Carlos Sampaio (PSDB-SP) por Antonio Imbassahy (PSDB-BA) na liderança do partido, os tucanos abandonaram a estratégia do “quanto pior, melhor” e decidiram apoiar o governo em questões essenciais para o país: “Cometemos algumas extravagâncias no ano passado. Foi uma coisa fora da nossa história, nós reconhecemos isso. Não faremos nada para sabotar o ajuste”, disse Imbassahy.
O líder do PT na Câmara, Sibá Machado (AC), chegou a dizer que “politicamente, o impeachment está morto”. Não foi o único a se manifestar nesse sentido. Só que a trajetória das crises não constitui uma linha reta: as tensões sobem e descem.
A dinâmica da crise
Ao longo da crise de 1992, houve momentos em que o presidente Fernando Collor parecia ter conseguido controlar a situação – que só se tornou irreversível após o depoimento do motorista Eriberto França, no qual acusou o presidente de se beneficiar do esquema. Durante a crise do mensalão, em 2005, o depoimento do publicitário Duda Mendonça, em agosto, foi devastador. Só que os ânimos arrefeceram após a cassação de José Dirceu, em dezembro. Em fevereiro de 2006, a avaliação de Lula voltou a subir, e ele acabou sendo reeleito em outubro.
Esse padrão cíclico se repete na crise atual. O governo Dilma aparentemente estava à beira do colapso quando ela entregou a articulação política do governo ao vice-presidente Michel Temer, em abril; e enfrentou outra situação aguda quando o presidente da Câmara acolheu o pedido formulado por Hélio Bicudo, em dezembro. Nos dois casos o governo sobreviveu.
A longevidade da atual crise – muito mais longa do que as de 1992 e 2005 – provoca certa surpresa nos segmentos que apostavam em um desfecho rápido. Mas não é a primeira vez que isso acontece. Algumas crises políticas demoram anos. Os desfechos é que variam: João Goulart foi deposto em 1964, mas José Sarney entregou o cargo ao sucessor, em 1990.
Na crise atual, a principal diferença reside no fato de que a dinâmica dos acontecimentos não depende apenas da movimentação dos políticos: ela é alimentada pelo Judiciário. Até o momento, as investigações atingem preferencialmente os integrantes do PT, embora os delatores volta e meia mencionem o envolvimento de líderes da oposição – como o senador Aécio Neves (PSDB-MG) – nas irregularidades. Ainda não está clara a razão dessa seletividade. Ignora-se se a Operação Lava Jato visa apenas o PT ou se, mais tarde, atingirá as demais grandes legendas, o que poderia levar a uma reorganização das forças partidárias.
A despeito dos inúmeros erros cometidos pelo atual governo, a crise política se alimenta dos problemas econômicos. Daí a insistência do ex-presidente Lula na adoção de uma estratégia que priorize a retomada do crescimento econômico. Mas a crise proveniente da esfera judicial se move em outro plano: ela consiste num ataque às formas de financiamento dos partidos.
No Brasil, as eleições são extremamente caras: para vencê-las, todos os partidos relevantes recorrem às contribuições dos empresários que dependem, em alguma medida, do setor público. Nesse sentido, é o próprio setor público que financia, de maneira tortuosa, a disputa entre as diversas legendas. Embora esse mecanismo seja utilizado por diversas siglas, a Operação Lava Jato aparentemente só tem atacado as legendas instaladas no governo federal.
Quando surgem crises desse tipo, o sistema partidário tende a se ajustar alterando a legislação para legalizar as práticas proibidas. Foi o que ocorreu no Brasil após a queda de Collor: a lei 8.713, de 1993, permitiu a doação de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais. Desta vez a solução não será tão fácil, porque o Supremo Tribunal Federal proibiu as doações de empresas. Mas o Congresso pode restabelecer essa regra por meio de uma emenda constitucional. Ou as próprias empresas podem desenvolver novas formas de destinar recursos aos partidos, de forma pulverizada. Não seria a primeira vez.
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