A estrutura mental da direita

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A direita derrubou uma esquerda para lá de moderada. Mas não há a mínima chance de que o governo golpista exerça uma liderança moral e intelectual em seu lugar. Foto: EBC

Desde que legiões de verde e amarelo saíram às ruas muita gente se assustou com a hegemonia de um novo conservadorismo no Brasil. É bem verdade que as hordas integralistas dos anos 1930 tinham um programa. Já a classe média que saiu a passeio desde 2013 não sabia muito bem o que queria, exceto eliminar o PT. Por isso mesmo, começo com uma hipótese estranha: é provável que esse ranger de dentes seja o sintoma da ausência de qualquer predominância ideológica.

Não quero, com isso, negar que uma onda reacionária invadiu a cena política. Entre a direita conservadora e o fascismo há um continuum. Um não é a distorção do outro, mas a sua realização.

A direita derrubou uma esquerda para lá de moderada. Mas não há a mínima chance de que o governo golpista exerça uma liderança moral e intelectual em seu lugar.

O conservadorismo nunca foi um conjunto de ideias extremistas apoiadas nas ruas, salvo em momentos excepcionais. Ele se define melhor por aquilo que os historiadores costumam chamar de “mentalidades”: uma ampla zona de atitudes e utensílios mentais dos quais todos se servem em alguma medida.

A sua força não está na ideologia, mas no sistema de valores que emoldura a vida material e a expectativa das pessoas comuns. Dentro de limites mentais já estabelecidos.

Progressistas

Por exemplo: no Brasil, o positivismo como teoria sociológica foi exemplar a esse respeito. Onze seguidores daquela doutrina comandaram estados na República Velha1.  Mas em 1912 apenas 317 pessoas estavam ligadas ou simpatizavam com a Igreja Positivista. Salvo no Rio Grande do Sul, onde o positivismo foi quase uma “religião laica do Estado”, ele explicava muito pouco a preeminência de uma certa visão de mundo que presidiu a construção do Brasil republicano.

Qualquer que fosse a ideologia, ela era apenas uma das manifestações possíveis dentro de uma forma mentis predeterminada. Todos acreditaram em Ordem e Progresso.  A intervenção neutra da ciência no reordenamento social era o pano de fundo compartilhado por todo mundo.

Pode-se argumentar que os liberais paulistas rejeitavam a ditadura centralizadora de Vargas, baseada numa combinação de repressão seletiva, órgãos corporativos e conselhos técnicos.

O liberalismo enfatizava o individualismo e não as classes sociais ou o Estado, mas ele não deixou de ser uma forma de regulamentação governamental baseada na suposta neutralidade estatal.

Prova disso é que o liberalismo sempre foi autoritário. Na República Velha, a elite paulista acreditava que o Estado deveria ser “liberal” na relação capital-trabalho, mas não nas políticas de salvação da lavoura do café!

As soluções governamentais deveriam ser técnicas e os políticos seriam administradores tão insípidos quanto um chuchu. Qualquer semelhança com o governo paulista no século XXI é mera coincidência. O pensamento científico assumiria o lugar de Deus numa pseudofilosofia “pragmática”, marcada pelo “trabalho”, a rotina e o juste-milieu (o meio-termo insosso que evita radicalismos).

Desenvolvimentistas

Contudo, o progresso só integrava a classe operária no interesse da própria burguesia. É famosa a frase do “positivista” Getúlio Vargas: “Eu estou tentando salvar esses burgueses burros e eles não entendem”.

A aparência de esquerda que os tecnocratas desenvolvimentistas podiam ter derivava do fato de que as próprias organizações operárias compartilhavam aquele terreno comum de atitudes mentais “progressistas” e sua luta arrancou consideráveis direitos trabalhistas.

Mesmo o anarquismo via a revolução como a culminância de uma evolução. Entre muitos comunistas encontraremos imagens organicistas e a defesa do progresso nacional como eixo da sua ação.

Bem, chegamos ao fim do século XX talvez libertos da Ordem, do Progresso e do desenvolvimento. Por quê?

A América Latina esteve até então destinada a uma industrialização acessória. Com o advento do capitalismo de porteiros de galpão e de gestores de eventos, seus espaços se reduziram a meras zonas extrativistas. Não há “progresso” algum aí. As atividades secundárias da colônia retrocederam à “principal”, aquela exportadora de commodities. Desabam todas as utopias do mercado interno.

A Ordem só pode ser mantida à força e a ideia de inclusão das classes trabalhadoras foi abandonada. Diante da nova ordem neoliberal, o individualismo foi entronizado no lugar do “interesse geral”. No lugar do progresso apareceu o “crescimento econômico”.

Neoliberais

Entre nós, as ideias sempre são ajustadas ao lugar, mas não ao tempo, aparentemente. Daí a estranha sensação de que sempre aparecem cedo ou tarde demais. É como se o Brasil, depois de ter sido o país do futuro, descobriu-se que é isso mesmo: o futuro desastroso da barbárie mundial. Mas esse futuro dos outros já se gestava no nosso passado. Assim, por exemplo, o poder moderador foi a contribuição original do nosso país ao neoliberalismo. Na Europa ele não passou de uma proposta do filósofo Benjamin Constant (1767-1830), mas só aqui e em Portugal foi adotado. Tratava-se de um quarto poder encarnado pelo imperador que “zelaria pela harmonia dos mais poderes políticos”, como dizia a Carta brasileira de 1824.

A ideia logo transitou para formas extraconstitucionais. Após sua extinção legal em 1889, foi exercida pelo Exército. Mas sua base foi o poder econômico.

Hoje, é claro, esse poder que escapa ao controle democrático está amparado num conjunto de leis, ainda que sob um Direito de exceção. Ao contrário da época anterior, não caímos numa ditadura explícita e sim numa democracia racionada. Não há necessidade de um partido único (como foi o complexo MDB-Arena) e sim de uma razão política única2.

Para proteger o poder econômico da má influência de maiorias eleitorais “circunstanciais” criam-se instrumentos “neutros”: o poder moderador de um banco central independente, da judicialização da atividade política e de leis que limitam a disputa democrática do orçamento, impondo um teto para gastos públicos e a “responsabilidade fiscal”.

Numa sociedade muito conflitiva como a nossa, a ideia de progresso reconstituía a “harmonia” em corporações onde cada um tinha o seu lugar definido, embora deixasse de lado um enorme contingente de negros e miseráveis de toda a sorte. Esse falso conjunto era a justaposição mecânica das partes e não uma totalidade. Mas funcionava meio à força, meio à base de ilusões. Hoje, essa combinação gera no máximo um Frankstein.

As Falhas da Dominação

Um Frankstein pode ter força, mas caminha desajeitado. Nas eleições municipais de São Paulo em 2016, depois do fenômeno das abstenções, elegeu-se um playboy da lumpemburguesia. Uma parcela da população comprou a ideologia do empreendedorismo, embora a maioria optasse por outros demagogos, uma esquerda combalida ou a abstenção.

Na Europa, o voto dirigido à extrema-direita é fruto do consenso neoliberal no alto e da sua recusa embaixo3. Enquanto os tecnocratas destroem o Estado de bem-estar social, o fascismo conquista os trabalhadores contra os imigrantes. Mais ou menos como os nossos setores médios “paulistas” descontam nos pobres a sua inveja das celebridades empresariais.

Quando a força de trabalho dos miseráveis (em geral negros) encarece, os setores médios se voltam contra os pobres. A funcionalidade do negro está no rebaixamento do tempo de trabalho necessário que a classe média branca precisaria despender se não tivesse porteiros, manobristas, faxineiras, babás a preços baixos. Talvez os professores integrem a lista.

Mas um sistema que finge que nunca houve golpes de Estado e substitui a história por um presente eterno já começou a girar em falso. Guy Debord dizia que “Um Estado em cuja gestão se instala por muito tempo um grande déficit de conhecimentos históricos já não pode ser conduzido estrategicamente”4. Sem história não há sequer nacionalidade. As classes dominantes apelam cada vez mais para trapaças sem nenhum plano estratégico.

Para dominar é preciso contar uma história, qualquer que seja ela. Há que existir uma origem e uma  finalidade que confiram sentido à vida coletiva.

Depois do golpe de 1964 os militares ainda mantiveram empresas estatais não só porque lhes davam oportunidades de corrupção, mas porque sustentavam a sua identidade com o próprio Estado, metonímia da Nação que eles venderam aos Estados Unidos, só que no varejo. É que eles ainda tinham a ambição de preservar uma parte da soberania nacional.

O golpe de 2016 levou tão somente a uma briga de foice pela divisão do butim. Não exibiu nenhum projeto nacional. Para manter a população do lado de fora da festa não há promessa de empreendedorismo que baste. Se não temos mais o desenvolvimento e a Nação, sobre quais laços estabeleceremos qualquer comunidade de destino?

Aquele terreno comum “progressista” ruiu. A mentalidade conservadora se desfez e deixou lugar apenas ao cinismo. Por isso, um governo de homens brancos só exibe um discurso démodé. As metáforas futebolísticas de Lula foram substituídas pelas imagens da economia doméstica. Sempre com as mesóclises do usurpador.

Como diria Gramsci: entre o velho que já se foi e o novo que ainda não surgiu aparecem formas bizarras.


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