Miguel Nicolelis é internacionalmente conhecido pelo seu trabalho e pesquisa enquanto neurocientista, líder do projeto Walk Again, além de responder como professor do departamento de Neurobiologia e co-diretor do Centro de Neuroengenharia da respeitada Duke University, nos EUA.
Mas Nicolelis, o dedicado torcedor do Palmeiras nascido na Bela Vista, em São Paulo, também se faz às vezes de escritor. Algo que ele diz se dedicar com prazer entre as horas silenciosas dos voos que precisa tomar entre os Estados Unidos e o Brasil com frequência.
“Made in Macaíba”, recém-lançado pela Editora Planeta, é o terceiro livro do autor e sucede o “Muito Além do Nosso Eu” e “O maior de Todos os Mistérios”, este dedicado ao público infanto-juvenil e co-escrito com sua mãe, Giselda LaPorta Nicolelis.
Com a terceira obra, Nicolelis inaugura também uma coleção de livros que sairá pela Planeta. Trata-se da “Biblioteca Miguel Nicolelis”, uma série de quatro títulos escritos pelo neurocientista, a serem lançados nos próximos anos.
Na noite dessa segunda-feira (22), Nicolelis falou para um público atento no Auditório Masp Unielever sobre a trajetória do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), da pesquisa e dos resultados obtidos até então com o “Walk Again”, a interface cérebro-máquina que visa devolver o movimento para pacientes com lesão na medula espinhal. Na ocasião, o neurocientista também aproveitou para lançar o livro.
À Brasileiros, Nicolelis concedeu entrevista exclusiva, onde dá detalhes sobre o novo livro, as conquistas do Walk Again e dos resultados que surpreenderam o cientista e toda uma equipe de profissionais mundo afora. “É uma coisa chocante, foi a primeira vez que a gente viu isso, eu olhei, olhei de novo e pensei não é possível”, diz o neurocientista quando viu que pacientes do Walk Again conseguiram recuperar movimentos dos membros inferiores.
A seguir, leia a entrevista.
Brasileiros – Professor, o que senhor pretende ao escrever o “Made in Macaíba” e por que lançar o livro agora?Miguel Nicolelis – O livro conta basicamente a história dos 13 anos desse empreendimento que é o Instituto de Neurociências em Natal. Acho que foi importante escrever essa história para deixar o relato não só do que a gente descobriu, de uma filosofia de fazer ciência como agente de transformação social, mas de como foi construir passo a passo esse projeto, que hoje é um dos projetos científicos brasileiros mais conhecido mundo afora. Pois, ele não só contribui cientificamente, com várias descobertas feitas lá em Macaíba, mas também criou uma visão cientifica que também não existia. A da neurociência se transformar num instrumento alavancador, de um projeto educacional que começa com o pré-natal de crianças que serão nossos alunos e termina com a pós-graduação deles e nisso tudo o Campus do Cérebro onde o Instituto está sendo criado, ele une tudo isso: saúde, educação, ciência, tecnologia, desenvolvimento e inovação em uma única estrutura.
Brasileiros – E como foi para o senhor revisitar esses 13 anos na hora de escrever o livro?
É muito emocionante, por que começamos do nada. Eu já estava há muitos anos fora do Brasil e tinha esquecido como era difícil fazer qualquer empreendimento inovador, e principalmente fazer ciência em um lugar onde as pessoas não acreditavam que era possível. E ser feita de alto nível, ainda mais com um projeto social atrelado a ela. Isso foi o começo da nossa utopia científico-social. Mas o importante também, principalmente nesse momento que o Brasil passa, é demonstrar que as utopias também podem ser concretizadas. E essa é uma história de uma realização, são 11 mil crianças que passaram pelas nossas escolas, mais de 60 mil atendimentos de pré-natal, trabalhos publicados em grandes revistas, e a proposta de que se pode fazer ciência voltada para a sociedade em um país como o nosso.
Brasileiros – Quando o senhor retoma essa história, o que senhor tentou priorizou na hora de narrá-la?
Principalmente, foi tentar explicar para sociedade o por que da ciência. Começo o livro com as perguntas fundamentais: por que ciência? Por que fazer ciência no Brasil? Por que ir para o Rio Grande do Norte? E conto um pouco a história do estado, tento mostrar que não é por acaso que os índices de desenvolvimento humano na periferia de Natal são dos mais baixos no Brasil. Fui descobrindo passo a passo a história do Rio Grande do norte, e tentei contá-la combinada ao desenvolvimento do projeto. Traço a história da chegada dos portugueses e da resistência dos índios Tapuia na colonização, eles resistiram a todo mundo. E curiosamente a capital do império deles era Macaíba. Então, calhou de essas duas utopias se sobreporem, evidentemente separadas por 500 anos.
Tento entrelaçar como era impossível fazer um projeto desses numa região tão devastada por esse histórico de 500 anos de exploração, e curiosamente estar lá e agora essas crianças depois de oito anos de projeto educacional estão entrando em universidades federais, nos institutos de tecnologia, e estão deixando de ser ou de seguir o estereótipo que havia sido planejado para elas. E hoje, elas querem ser arqueólogas, antropólogas, professores, cientistas, e isso faz uma mega diferença. Houve uma transformação muito profunda da comunidade do entorno que era o nosso objetivo desde o início.
Brasileiros – O “Made in Macaíba” é o primeiro livro de uma série
Isso, esse é o primeiro de uma série de quatro livros com a editora Planeta, é uma coleção que eles chamaram de “Biblioteca Miguel Nicolelis”. Teremos a segunda edição do “Muito Além do Nosso Eu”, o “O Chute”, que é exatamente toda a parte científica da história na Copa do Mundo. E o último dessa série é um novo livro que estou escrevendo nos EUA, que é a continuação do “Beyond Boundaries”, que é a continuidade da minha teoria expandida sobre o cérebro, uma visão bem mais abrangente que não envolve só biologia, mas ciências humanas e arte, uma visão do cérebro que eu acredito que vai levar as pessoas a pararem para começar a sentir que a neurociência pode ser o que a física foi para o século 20. Acho que a neurociência tem o potencial de se transformar no grande movimento científico desse século.
Brasileiros – Mas no “Made in Macaíba”, o senhor também já conta um pouco da história do Chute da Copa do Mundo.
Sim, tem um capítulo que eu conto, mas é muito resumido, sem muito da parte científica. Mas no “Kick” (título do livro em inglês), eu quero contar todo o contexto, principalmente nesse momento do Brasil, pois enquanto recebíamos todo o apoio de revistas de ciência de fora, de jornais como Guardian, NYT, aqui nós sofremos uma pressão impressionante. Mas está feito e é reconhecido no mundo inteiro.
Brasileiros – A que altura se encontra o Projeto Andar de Novo?
Nós continuamos trabalhando, recrutamos mais um grupo de pacientes. Agora estamos quase com 20 pacientes. Os papers continuam sendo enviados, temos apresentações em congressos. Tenho dado palestras em todo lugar do mundo, contando os resultados. Por que tivemos descobertas clínicas e científicas muito importantes, coisa que a gente não esperava. Logo depois da Copa, tivemos o primeiro baque que foi descobrir que 50% dos nossos pacientes estavam recuperando movimentos e a sensibilidade abaixo da lesão medular, que é algo que não tinha sido relatado, principalmente pacientes que têm paralisia total, sensibilidade totalmente abolida abaixo da lesão. Hoje nós estamos com quase 80% dos nossos pacientes mostrando recuperação de funções motoras, sensoriais e viscerais abaixo do nível da lesão, o que é um achado espetacular. Então, estamos com vários trabalhos submetidos, é um processo longo a revisão cientifica, um negócio que dura cerca de um ano e meio. Mas a hora que esses trabalhos começarem a sair, vamos poder comentar abertamente a magnitude dos resultados clínicos.
Brasileiros – Parte da dificuldade de avançar o projeto é uma questão técnica?
Sim, por que você está lidando com algo multidimensional. Não sabíamos quando começamos o projeto que íamos conseguir induzir nenhum tipo de melhora clínica. Isso foi uma descoberta genuinamente surpreendente, quando a gente criou a interface cérebro-máquina específica para a locomoção, a ideia era devolver movimentação, mas devolver a movimentação é só uma tecnologia que a gente chama de tecnologia assistiva. Mas gente não esperava que os pacientes iam recuperar movimentos. Alguns dos nossos pacientes, se você os coloca de pé e dá apoio para o corpo, eles conseguem mover as pernas e produzir movimentos síncronos a ponto de gerar movimentos, e isso é totalmente inesperado.
É uma coisa chocante, a primeira vez que a gente viu isso, eu olhei e pensei não é possível. Tudo que eu aprendi em medicina diz que isso não é possível, mas aí a gente talvez tenha descoberto o mecanismo que explique. Esse é um assunto que está nesses trabalhos que estão sendo revisados, e é uma teoria do por que estamos tendo essa recuperação a partir do uso crônico da interface cérebro-máquina. E se a teoria se mostrar válida, se ela for replicada, não só por nós, mas por outros grupos, são 25 milhões de pessoas no mundo com lesão medular, e a vasta maioria dessas pessoas, o destino hoje é muito duro. Por que neurologistas, evidentemente, na maioria dos casos informa ao paciente que a chance de recuperação é nula ou muito pequena.
Brasileiros – Imagino que para o grupo de pacientes deva ter sido uma emoção muito grande
Sim, os depoimentos deles são emocionantes. Cada vez que eu vejo os filmes, eu tenho uma emoção muito profunda. É muito difícil você segurar. Como nós criamos uma interface que tem benefício tátil, que é algo que não existia nas interfaces cérebro-máquina até recentemente, achamos uma forma de criar uma sensação virtual, um membro fantasma. Então quando os pacientes estão andando, eles estão sentindo as próprias pernas, eles relatam para nós que estão andando por si mesmos e não no exoesqueleto, mas eles estão nele. Só que cada vez que o exoesqueleto encosta no chão, ele devolve para os braços que têm enervação uma sensação tátil. Achamos os parâmetros de como entregar esse sinal na pele do braço, que basicamente ilude o cérebro a gerar a sensação de que eles estão se movendo e tocando o chão a ponto dos pacientes conseguirem hoje a discriminar qual é o chão que estão andando, qual é a textura dele.
Brasileiros – E o senhor vê aplicação comercial do Exoesqueleto em um tempo?
Sim, acho que a aplicação terapêutica em reabilitação vai ocorrer. Já existem várias empresas envolvidas, só que o nosso grande limite é a robótica, de construir sistemas autônomos. Por que você pode treinar um exoesqueleto para andar nesse chão, com o paciente controlando e recebendo feedback tátil, só que se você puser um carpete nesse chão de repente, o exoesqueleto não funciona, por que as condições mudam dramaticamente e o controle da máquina muda. E quando você está falando de uma máquina que tem múltiplas articulações, todo sistema de controle é altamente não linear, então os roboticistas começaram a perceber que se você coloca uma pessoa dentro de um robô, muda todo o jogo. É uma nova área de robótica, que começou muito recentemente.
Agora que estou escrevendo o livro, as pessoas vão se surpreender pelo grau de dificuldade, os obstáculos que tivemos que vencer para estarmos no dia 12 de junho de 2014 naquele campo na abertura da copa, sofrendo todo tipo de pressão da Fifa, todo tipo de tentativa de sabotagem. Nenhum cientista marca hora para fazer uma demonstração desse grau de complexidade em um lugar aberto para milhares de pessoas num estádio e bilhões de pessoas no mundo assistindo.
Foi uma coisa muito emocionante que eu nunca vou esquecer, aqueles derradeiros segundos que antecederam o chute do Juliano acho que foram os momentos mais emocionantes que eu já tive na minha vida, muito mais que Copa do Mundo ou qualquer título do Palmeiras, foi uma coisa de louco.
Brasileiros – Mas o senhor guarda alguma mágoa a respeito daquele dia quando a Fifa cortou o período de transmissão de 30 segundos para 8?
Não, não guardo nenhuma mágoa, por que eu sei da magnitude do que foi feito, eu vivi aquilo intensamente. E eu sei que tanto para mim, quanto para os meus colegas que estavam ou não no campo, todos nós sabemos que foi um dia histórico e vai ser lembrado como tal, existiram uma série de mesquinharias, eu ouvi muita bobagem aqui no Brasil, muito absurdo, mas no frigir dos ovos, tudo isso vai desaparecer, por que quem vai lembrar disso?
Brasileiros – O senhor encara da mesma forma as críticas que alguns cientistas brasileiros fizeram ao projeto na época?
Esses cientistas não tinham nenhum embasamento científico na área, são pessoas que basicamente tinham um problema em Natal, gente que teve um problema na colaboração e que acharam que era o momento de ventilar todas as suas frustrações, mas nenhum deles tinha um trabalho na área de interface cérebro-máquina, então as críticas deles não tinham primeiro nenhuma validade científica e segundo, entraram por aqui e saíram por aqui.
O problema aqui é que todo mundo acha que pode opinar em tudo, sem ter o conhecimento específico às vezes, sem ter a grandiosidade de entender o que significa para um homem paralisado do meio do tórax para baixo em um evento, conseguir com toda emoção dar um chute na bola e sentir a bola. Por que o Juliano disse no dia que estava sentindo o contato com a bola. Isso tudo é muito maior do que qualquer mesquinharia.
Brasileiros – E o que o senhor prevê para o futuro do projeto “Andar de Novo”?
Acho que o Projeto Andar de Novo criou um paradigma, colocou de vez a capacidade da ciência brasileira no mundo científico internacional, não é o único projeto que fez isso, mas ele claramente trouxe uma visibilidade muito grande e está tendo resultados que estão abrindo uma nova área na neuroengenharia, então acho que tem tudo para se perenizar e replicar.
Meu sonho é poder sedimentar essas técnicas e poder começar a distribuí-las pelo país e mundo todo. Nós também temos técnicas para Parkinson. Temos mais de 50 pacientes no mundo que estão usando com sucesso a técnica da estimulação elétrica da medula espinhal, cujo trabalho em primatas foi feito em Natal e publicada na Neuron, que é uma grande revista americana e está causando maior repercussão por que ninguém esperava. Então acho que tudo que está escrito nesse livro, nos dois primeiros capítulos que falam dos nossos ideais, quais foram os objetivos que me trouxeram de volta ao Brasil e me motivou a passar tudo que aconteceu nesses treze anos, eles estão aí para serem mostrados.
As pessoas podem falar o que quiserem, mas o que a gente prometeu está feito. Hoje existe um pólo de ciência na periferia de Natal, com escolas com 1500 crianças, temos atendimento social que mudou o panorama da comunidade local e nós continuamos publicando e mandando coisas do Brasil para fora. Então no frigir dos ovos, o saldo é muito positivo. Poderia ter sido mais fácil, mas não tem jeito. Essas coisas nunca são do jeito que a gente planeja.
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