A demora do governo em abrir um canal de diálogo com os policiais que iniciaram uma paralização no Espírito Santo no último dia 3 foi erro, avalia o cientista político Guaracy Mingardi, ex-investigador da Polícia e especialista em Segurança Pública. “Tentar fazer a população achar que a culpa é só da polícia não vai adiantar porque o governo vai ter que trabalhar com os policiais no final das contas. A negociação tem que começar logo em seguida. Tem que conversar com os grevistas e tentar chegar a um acordo factível.”
Mais de 700 policiais foram indiciados pelo crime de revolta e o governo começou o processo de demissão de 161. Números oficiais não são divulgados, mas o Sindicato da Polícia Civil fala em 121 mortes até agora. A categoria pede reajuste salarial e benefícios atrasados.
Mingardi diz que a PM deveria ter o direito a fazer greve – hoje proibido pela Constituição e discorda de quem chama a manifestação de “chantagem”: “É o único instrumento que eles têm para negociar. O governador já não está falando com eles agora, imagina sem greve. Esse negócio de chantagem é bobagem. Estamos numa democracia, você tem que negociar com todo mundo”.
Mingardi, que também foi Secretário de Segurança Pública de Guarulhos, Assessor do Procurador Geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo e Subsecretário Nacional de segurança pública, criticou o silêncio do Ministério da Justiça em meio à crise: “Mesmo que indicado para o STF, Alexandre de Moraes ainda é ministro da Justiça. Esse é um caso que interessa à Pasta dele, ele tinha que ter falado e dito a que veio. Mas assim como não fez isso como Secretário de São Paulo, ele repete isso no Ministério da Justiça”.
Revista Brasileiros – Pelos números dos sindicatos, mais de cem pessoas morreram durante a greve da PM no Espírito Santo. O governo demorou para negociar?
Guaracy Mingardi – O governo tem que negociar de alguma forma. Mesmo que ele não ganhe nada e os policiais voltem, como normalmente acontece, eles vão voltar insatisfeitos. E como fazer o policial trabalhar insatisfeito? Não é uma linha de montagem. Se um policial está insatisfeito e ele vê um crime acontecendo em uma esquina, ele vai para outra. Não tem como fiscalizar cada dupla de policiais.
O governo tem que negociar e oferecer alguma coisa no curto prazo, dar X de aumento, e fazer um plano para melhorar a situação no médio prazo. Por exemplo, como as condições de trabalho. Quando você não consegue comprar um colete à prova de balas para cada policial, é porque a situação está ruim.
Por que o senhor acha que o governo não quis negociar de início?
O governador estava internado. Aparentemente estão sem dinheiro, mas em situações de crise, tem que definir as prioridades. E a prioridade tem que ser saúde, educação e segurança. Tem que dar um jeito disso funcionar. O governador está lá há algum tempo e poderia ter começado a negociar quando tinha um pouco mais de dinheiro.
Os policiais não têm carreira. Ou você entra como soldado ou como oficial, isso poderia ser negociado. Apresentar um projeto de lei com ingresso único na polícia, assim todo mundo entra como soldado e pode chegar a oficial.
Não negociar foi um erro, tem que fazer isso logo de cara. Tentar fazer a população achar que a culpa é só da polícia não vai adiantar porque o governo vai ter que trabalhar com os policiais no final das contas. A negociação tem que começar logo em seguida. Tem que conversar com os grevistas e tentar chegar a um acordo factível.
Normalmente greves de polícia ocorrem desta forma: dias de caos e sem negociação?
Os governantes acreditam que, por ser militar, e militar não poder fazer greve, eles têm um poder de mando que não têm. Na verdade, quando são os professores que entram em greve, o governo demora, mas acaba negociando. Ficar uma semana sem aula não cria essa crise toda e olha que sou professor. Uma semana sem segurança não dá. Então eles estão acostumados a jogar bem para frente.
No caso de militar, a lei não permite, então eles pensam: ‘vamos prender os cabeças’. Mas quem vai prender, se a polícia está em greve? É uma punição para depois da greve. Mas aí o dano já foi feito para a população.
Eu já vi vários governadores que não queriam negociar e depois acabaram entrando numa espécie de negociação, ainda que não seja formal. Normalmente essas greves acabam por si mesmas. O policial volta uma hora ou outra. O problema é que você vai ter uma polícia que não está querendo trabalhar, vai fingir que trabalha.
E o saldo de ao menos cem mortes?
Não dá para saber porque não temos dados oficiais. É um região violenta que estava sendo controlada. A região em volta de Vitória tradicionalmente era onde tinha o maior numero de homicídios. Quando acontece um evento desse tipo, o numero de mortes, roubos, saques, aumenta. Quando tiveram dois grandes blecautes em nova York, teve saques, homicídios, o diabo. E isso foi falta de luz, não é que a polícia parou. Essas coisas acontecem quando uma mudança brusca, uma falta em uma grande área urbana.
Para o senhor faz sentido que as polícias militares sejam proibidas de fazer greve?
Claro que não. Eu acho que elas não deveriam ser militares. Isso é uma falsa ilusão de controle. Primeiro porque é uma coisa que afasta a policia da população, cria uma ética militar que afasta. É mais difícil fazer policiamento comunitário. Os governos gostam muito mais das polícias militares do que das civis porque nos casos de distúrbio você usa a PM. E os governos estão mais preocupados com isso do que com o crime. Não querem passeata. Não estão preocupados com o crime. O que derruba o governador é mais a bagunça do que o crime.
Querem conter a ebulição social.
Exatamente, é tradição nossa, desde a época da escravidão, ter uma polícia para separar, manter as classes perigosas quietinhas lá. E por isso que se aposta numa policia militarizada, que você manda, mas até a página 2, porque uma hora ela não vai fazer.
Em vários lugares a polícia pode fazer greve e em outros não. E tem aquelas regras de que serviços essenciais têm de manter um mínimo de funcionamento. Se você conseguir fazer com que as polícias façam isso, já é um grande avanço. Do jeito que estão, elas vão para o tudo ou nada. Se garantir legalmente os serviços essenciais, é melhor.
O Estado e a população local do Espírito Santo estão sendo alvo de chantagem?
Isso é o que o governador falou. Os caras entraram em greve, é simples. É o único instrumento que eles têm para negociar. O governador já não está falando com eles agora, imagina sem greve. Esse negócio de chantagem é bobagem. Toda vez falam isso, como se o governo fosse o dono do dinheiro e decidisse a vida de todo mundo. Nenhum governo é isso. Estamos numa democracia, você tem que negociar com todo mundo.
E os familiares? Por que o Estado não tira essas pessoas da frente dos batalhões?
Quem faria isso? O Exército? Imagina se acontece um acidente, se eles machucam a mulher de um soldado. Aí a PM vai ficar contra o Exército, aí é que eles não voltam mesmo, a coisa pega fogo. Quem vai obrigá-los a voltar? Os 1.800 soldados que estão lá? A PM tem 10 mil homens lá.
As PMs, em qualquer estado brasileiro, são maiores do que o Exército. Aqui em São Paulo, são 95 mil homens e não tem nem 20 mil homens do Exército. E são recrutas normalmente. Já pensou se acontece algum acidente? Aí acaba com qualquer possibilidade política do governo, de todo mundo. Essa estratégia de usar a família à frente é muito usada porque não são soldados e podem fazer greve.
O ministro da Justiça e indicado para o STF, Alexandre de Moraes, não se pronunciou até agora. O que isso mostra?
Ele ainda é ministro da Justiça, esse é um caso que interessa à Pasta dele, ele tinha que ter falado e dito a que veio. Mas, assim como ele não fez isso como secretario de São Paulo, ele repete isso no Ministério da Justiça.
O que a situação do Espírito Santo diz sobre a situação de segurança pública no Brasil? Essa situação tende a se espalhar pelo País?
É cíclico. Há uns anos teve uma série de greves policiais no País. Esses grupos, associações, vão passando de lugar para outro. O Rio de Janeiro está com um problema sério para pagar o funcionalismo público. O Rio Grande do Sul também, só para falar em dois estados grandes. Os estados pequenos também estão passando por isso.
E se o pessoal entrar em greve em três, quatro estados ao mesmo tempo? O Brasil não tem o que fazer nesse caso. O Rio de Janeiro vai mandar 30 mil soldados para fazer o trabalho da PM? Nunca cuidou de resolver o problema de salário, condições de trabalho, nunca mexeu nisso, nunca pensou na questão de serem militares. Tem muito policial que não quer ser militar. Ninguém pensa para frente, pensa no agora. Dá um jeitinho para resolver a crise e depois empurra para a frente com a barriga.
O governo vai ter que trabalhar, ter um plano. Isso deveria partir do Ministério da Justiça, que não tem plano nenhum, assim como não tinha para enfrentar a crise do sistema penitenciário, que está rolando ainda. A briga entre o PCC e o Comando Vermelho não terminou.
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