A educação escolar indígena no Brasil é prevista em lei desde 1997. A questão pedagógica, no entanto, que tem como objetivo conciliar o currículo nacional a um programa indígena, ainda está em fase de diagnóstico no País. É o que diz Linete Ruiz Ferreira, servidora da Funai na Coordenação Regional do Medio Purus, no sul do Amazonas, e que trabalha com educação indígena há 20 anos.
A falta de conhecimento para desenvolver um projeto educacional apropriado tanto entre os indígenas quanto entre os técnicos dos municípios, dos estados e da Funai dificulta a implementação de um currículo próprio, diz Linete. Além disso, a legislação garante que cada povo decida seu próprio processo educativo, o que preserva a diversidade das diferentes culturas indígenas, e deixa ainda mais complexa a realização de um programa.
A região onde Linete atua comporta 4 municípios, cerca de 9 mil indígenas, mais de 150 aldeias e 27 terras indígenas regularizadas. Confira abaixo a entrevista que a servidora da Funai concedeu à Brasileiros, após um debate organizado pela Caravana do Esporte e das Artes, em Lábrea.
Revista Brasileiros: A educação indígena está prevista na legislação brasileira desde 1997. Quais são as dificuldades de avançar nessa questão e tirá-la do papel?
Linete Ruiz Ferreira: Desde 1997 tivemos pareceres da câmara nacional de educação básica, tivemos resoluções, a mais recente é de 2012, a resolução 005, e elas orientam os próprios professores indígenas a implementar nas aldeias uma educação intercultural, que aborde as particularidades indígenas, mas também o currículo nacional. Uma escola indígena é muito difícil de implementar porque ela tem o dobro do conteúdo que a escola comum. Ela tem todos os conteúdos da escola comum e ainda tem que atender às diversas especificidades e línguas diferentes que têm cada povo. Tem aldeia que com sete línguas diferentes. A FUNAI fez isso em épocas passadas, reuniu vários povos em uma mesma aldeia e agora tem aldeias com sete línguas faladas. Como que você consegue ter um currículo que atenda a todos os povos? Hoje temos muitas dificuldades porque há poucos técnicos que entendam da questão indígena, tanto entre os próprios indígenas, quanto no governo ou mesmo na FUNAI. Estamos na fase de diagnóstico educacional. Não saímos dele ainda porque todo dia estamos tentando aprender com a comunidade indígena e nesse aprendizado tentando encontrar o melhor rumo.Tem muitas comunidades bilíngües onde os indígenas já aprenderam a vestir roupa, a usar sal, óleo, sabão, itens que não são produzidos na aldeia. Então o índio não pode mais viver do usufruto dos recursos da floresta. Ele precisa ter uma renda para poder comprar essas coisas. E como que ele vai comercializar se ele não sabe falar português, se não sabe matemática. Tem comunidades bilíngües pedindo para aprender minimamente isso, para não ser enganado nesse comércio que ele é obrigado a entrar. Em função disso, temos uma série de outros problemas. O índio vem na cidade, recebe o Bolsa Família, ele vai no mercado comprar uma coisa. Se essa coisa custa R$ 5 para o não índio, para o índio custa R$ 10. Aí o dinheiro do Bolsa Família não é o suficiente, o comerciante diz: deixa o cartão aqui, fica metade aqui, metade mês que vem. Em vários estabelecimentos comerciais você vê bloquinhos de Bolsa Família, de aposentadoria de indígenas.
O projeto Eu sou bilíngüe intercultural é uma iniciativa dos indígenas, hoje tem apoio da Funai. Tem duas salas de aula, uma paumari outra apurinã, para tentar manter vivas as línguas indígenas, que por necessidade vieram para a cidade. Em labrea tem um numero muito grande, que já vivem na cidade, se estabeleceram, tem emprego, não faz parte da perspectiva dessas famílias voltarem para as terras indígenas.
O professor Edilson, do projeto Eu sou bilíngüe intercultural, que dá aulas de paumari e apurinã, disse que parece ser proibido um índio estudar. O que ele considera um absurdo, já que todo ser humano teria o direito de desenvolver as suas capacidades.
É, como se índio não fosse ser humano. Índio não pode ter celular, não pode ter blog, não pode estar no Facebook. O Eu sou bilíngüe trabalha justamente a interculturalidade porque além de valorizar a língua materna, também coloca para os indígenas que eles precisam falar inglês, estar bem no português. Acho muito legal, trabalham muito bem a sua língua materna e reconhecem a necessidade dessa interface com as outras culturas. No Purus tem muitos indígenas na cidade. Da mesma forma que tem apurina e paumari desenvolvendo o projeto Eu sou bilíngüe, tem os indígenas de jarawara reivindicando o ensino médio dentro de suas aldeias. Isso quer dizer que vai ter o tal do IPTV, que é a televisão colocando o branco para falar em português, dentro de uma aldeia na qual todo mundo é monolíngüe. Isso vai matar a língua indígena. É aquela coisa de querer imitar o que está na mídia. Tem o mesmo poder sobre todas as pessoas, indígena ou não. Já vi isso acontecer em outras comunidades indígenas e é muito triste. O indígena cai num conto da beleza, vê aquela coisa linda na televisão e de repente não é só o aluno que está aprendendo português, mas a aldeia inteira. Temos exemplos de alguns povos que estão fazendo mídias em suas línguas. Os paumari vão ter em setembro o campeonato da língua indígena onde vão ter várias atividades. O produto final será um material para se fazer vídeo, cd e livro na língua. São estratégias para tornar mais justa a relação entre a cultura nacional e as culturas indígenas. Não é renegar uma ou outra, as duas são importantes. Mas a gente precisa ter um equilíbrio. Às vezes caímos numas armadilhas, tem que ficar se policiando o tempo inteiro.
Dada a complexidade dos diversos povos indígenas, é possível pensar em uma educação indígena?
A legislação fala da autonomia dos povos indígenas para conceber o seu modelo de educação especifico. Olha que complicado. Como é que um indígena, que nunca teve uma escola em sua comunidade, vai conceber essa escola? A educação para todos os povos indígenas se dá no dia a dia. Você vê criança desde pequena indo para a roça, caçada, pesca. Elas têm contato com armas, ferramentas. A brincadeira do indígena é imitando o adulto. O meu filho é indígena, meu marido também, e eu muitas vezes me peguei com medo do meu filho mexendo com ponta de flecha, arco. E hoje eu vejo que ele tem 17 anos e nunca se machucou no mato.
A educação indígena no Brasil está neste processo: de descobrir o que é melhor para cada povo.
Ninguém acha que índio precisa ficar no museu, isso não existe, o ser humano desenvolveu. A gente encontra os indígenas em uma etapa. Dali eles vão para frente, de uma maneira ou de outra. Temos que ter cuidado em como influenciar para que esse ir para frente seja bom para eles. É um exercício constante de se questionar. Infelizmente temos pouca gente na Funai para discutir isso.
E qual a perspectiva daqui para frente? A senhora vê como uma prioridade do governo tratar desta questão?
Prioridade não é, está muito longe disso, porque tem pouca gente com conhecimento e disposição para discutir essas questões. Na educação somos formados com modelos pedagógicos, que temos que largar e pensar em uma educação para cada povo. Isso dá muito trabalho, exige muito tempo. Tem que aprender a ouvir as pessoas. A elaboração de um calendário, por exemplo. Tem comunidade que durante as épocas de temporais, com os bichos de caça desovando, fica na praia aproveitar. Então como que o aluno vai freqüentar a sala de aula nesse período? Sem contar que até 10, 11 anos, idade na qual a criança está sendo criada pelos avós, a escola não pode entrar com português, tem que registrar os conhecimentos que os avós estão transmitindo. Precisa ter perspicácia, paciência para formalizar esses processos que já existem. Tem muitos municípios que tem abertura para isso, mas faltam técnicos. É um desafio muito grande. Não conseguimos acompanhar todos, mas é por isso que fazemos os seminários de educação.
Existe algum modelo funcionando que a senhora avalie positivamente?
Cada caso é um caso. O que acontece no Rio Negro não se aplica a nossa região. Os rios têm características diferentes, povos que vivem de formas diferentes. A concepção dessa educação não está pronta, espero que nunca esteja – senão vamos cair no caos que é a educação publica com todos os seus problemas. Não queremos que a escola indígena se afaste da realidade dos que vivem ali, não pode ser um elemento estranho, tem que ser construída a partir da vida deles. É lento. Eu vou caducar, meus filhos também e os indígenas ainda vão estar construindo. A vida deles é muito dinâmica e isso se reflete na educação deles também. É muito legal trabalhar com comunidades que dão uma importância à educação que a gente não dá, justamente porque a educação é algo do dia a dia. Graças a deus não separaram uma coisa da outra, como a gente fez.
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