A história de uma jovem militante de esquerda presa e torturada em nome da democracia não parece em nada com a biografia da mulher que décadas depois chegava à Presidência da República no Brasil. Para o carioca Chico Alencar, ex-petista e hoje deputado federal pelo PSol, “a ex-rebelde [Dilma Rousseff] resignou-se em comandar apenas a sobrevivência de seu governo”.
Em entrevista à Revista Brasileiros, Alencar compara a antiga guerrilheira à “presidenta que hoje pouco preside”. Dilma daria “lições de como não enfrentar uma crise”. O loteamento da Esplanada dos Ministérios ao PMDB tornaria o PT um mero coadjuvante no governo, hoje “no fundo do poço”. “E será um partido de nível médio nas eleições municipais do ano que vem.”
Surpresa maior só com a sobrevida de Eduardo Cunha (PMDB), presidente da Câmara. “Nossa, imagino se as contas na Suíça fossem de Dilma! O processo de impeachment seria instalado na segunda-feira e ela seria pressionada a renunciar já!”
Para o comunista, Cunha está inaugurando procedimentos “jamais vistos na dinâmica da Câmara dos Deputados”: refaz votações, vira as costas para quem lhe questiona. Interrompe oradores. “No centro da questão, o desespero dele com o fim da dinheirama de corporações nas campanhas.”
Leia os principais trechos da entrevista:
Brasileiros – Na semana passada o presidente da Câmara evitou a todo o custo a sessão do Congresso que votaria os vetos da presidenta Dilma. Há precedentes de algo desse tipo em nossa democracia?
Cunha está inaugurando vários procedimentos jamais vistos na dinâmica da Câmara dos Deputados: refaz votações, vira as costas para quem, da tribuna, lhe questiona. Interrompe oradores – tudo atropelando o Regimento, do qual se diz, cinicamente, “escravo”. Tenta ser senhor até dos nossos mandatos! Por outro lado, essa postura traz grande desgaste ao próprio Cunha, cuja fama de truculento e impositivo – além das denúncias de corrupção – só faz crescer. No centro da questão, o desespero dele, e de muitos de seus aliados, com o fim da dinheirama de corporações nas campanhas. São políticos, ao que parece, mais movidos a dinheiro do que a ideias e causas.
E como o senhor acompanha a aparente inércia da população, que não se movimenta contra o Cunha apesar de todas as recentes denúncias?
O povo está cansado e frustrado. A reversão de expectativas depois de quase 13 anos de governo do PT, que desmobilizou as forças sociais de mudança e entrou na corrupção que sempre criticava, provoca desencanto, falta de ânimo. Lutar para quê? Mas, por sobrevivência e por réstia de ideais, ainda há muitas lutas populares no Brasil. Poucas vezes ficamos sabendo delas, pois a mídia grande não tem interesse em destacar as batalhas dos “de baixo”. Cunha tem enorme rejeição nas ruas, mas daí o povo se inserir em um movimento “Fora Cunha” vai alguns quilômetros de distância de consciência a percorrer. Mas esperamos que essa consciência cresça, pois as mudanças no País só virão de baixo para cima, quando as praças questionarem os ocupantes dos palácios que fazem tenebrosas transações.
Se algumas dessas denúncias fossem contra a presidenta, como a descoberta de contas na Suíça, o senhor acha que ela ainda estaria no cargo? Por quê?
Nossa, imagino se as contas na Suíça fossem de Dilma! O processo de impeachment seria instalado na segunda-feira e ela seria pressionada a renunciar já! Isso porque o tratamento da mídia, que ajuda na produção do chamado senso comum, é seletivo. As denúncias de que o falecido Sérgio Guerra, que foi presidente do PSDB, recebeu R$ 10 milhões para abafar a CPI Mista da Petrobras, na Legislatura passada, foram sepultadas.
E o comportamento da presidenta diante da crise. Qual lição ela dá ao Brasil ao ceder tanto à oposição e ao PMDB?
Dilma dá lições de como não enfrentar uma crise. Vai pela via ortodoxa, com o ajuste que só agrada aos rentistas e grandes banqueiros, e pelo pragmatismo político, entregando ministérios ao PMDB para salvar seu mandato. Isso não tem futuro, ainda que de imediato possa afastar o fantasma do impeachment. Nenhum novo ministro assumirá por ter conhecimento das políticas públicas de sua área. É pura barganha política.
Não parece contraditória essa postura para alguém com o passado de resistência à ditadura?
A jovem Dilma que resistiu à ditadura e por isso foi barbaramente torturada saiu de cena. Dilma é a gestora da crise, a presidenta que hoje pouco preside. E sem a base de sustentação de antes, pois o PT está no fundo do poço. Ele não é sequer a força principal do governo, agora. E será um partido de nível médio, no máximo, já nas eleições municipais do ano que vem.
O senhor não acha que o PT deveria abandonar o governo pra salvar um pouco da sua história?
Mas foi ele quem esteve à frente da campanha de Dilma ano passado, não dá pra largar de vez o governo agora, em cenário sombrio. “Ajoelhou, tem que rezar”. Parece-me que vai estar junto à “companheira Dilma”, mesmo escanteado das linhas mais importantes de decisão governamental, até o fim deste mandato. O PT sequer faz o que era comum em partidos de esquerda, antigamente: uma profunda autocrítica dos desvios cometidos. Nada disso. O PT atual contenta-se em ser sócio menor do PMDB… E Dilma, a ex-rebelde, resignou-se em comandar apenas a sobrevivência de seu governo até 2018. Há dúvidas se conseguirá, se o cenário econômico não parar de se deteriorar.
Depois de junho de 2013, decepcionou o desenrolar das discussões políticas no Brasil?
Não. As “jornadas de junho” foram uma catarse. Analisei isso em meu livro A rua, a nação e o sonho (editora Mar de Ideias). Além de conectar mentes e buscar as ruas e os significados, os movimentos daquele ano eram difusos, confusos e absolutamente horizontais. Daí sua originalidade, que também comprometeu sua continuidade. Foi um desabafo, um grito de alerta. A tradução eleitoral, no ano seguinte, foi um Congresso mais conservador. Vivemos tempos de sinais trocados e cartas embaralhadas. O povo mais sofrido continua com suas lutas, mas isso quase nunca ganha espaço na mídia grande. Persiste a crise de credibilidade nas instituições políticas. O velho agoniza e o novo ainda não nasceu: estamos num interreno no qual surgem fenômenos estranhos e a marca é a imprevisibilidade.
O que o senhor achou da recente saída de membros históricos do Psol em direção à Rede. Surpreendeu?
Os que saíram do PSOL para a Rede já manifestavam certo descontentamento em estar em um partido com o qual não se identificavam plenamente. Buscaram uma zona de conforto, um espaço partidário para chamar de seu. Respeitamos os que querem ter liberdade para fazer alianças amplas, sem medo de descaracterização, mas não estamos nessa. Querer crescer com qualidade e nitidez. A Rede, convenhamos, ainda não tem um perfil ideológico muito claro. Nos primeiros passos de sua constituição, Marina chegou a dizer que seria uma organização “horizontal, pós- esquerda e pós-direita”. Apoiou Aécio no segundo turno, o que já foi um indicativo. Há quem diga que os que se filiam agora vão torná-la – a Rede – mais progressista. A conferir. Por outro lado, militantes e parlamentares da esquerda do PSB – entre eles, destaco o deputado federal Glauber Braga -, vieram para o PSOL. Se pudermos estar juntos com a Rede e outras forças políticas nas lutas contra Cunha, pelo cuidado ambiental, por ética pública e pelo fim do dinheiro empresarial na política, por exemplo, confrontando os esquemas de cumplicidade dominantes, será muito bom. O PSOL é um pequeno partido com vocação de grandeza e firmeza de princípios, que preza pelo trabalho coletivo, e não de personalidades. Seguiremos nosso caminho, sem pretensões hegemônicas e sabendo que é preciso buscar os movimentos vivos da sociedade para servi-los, e não para se servir deles. Queremos, junto com outros, como disse Maiakowski, “arrancar alegrias ao futuro”.
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