Lar doce lar

Ah, que dia difícil. Trabalhar cansa. Tudo o que eu quero é um banho quente. Abraçar meus filhos e meu marido. Como é bom chegar em casa.

Sua vaca! Por que demorou tanto? Onde você estava, vagabunda? E não me olha com essa cara. Eu tô falando pra fechar essa boca de merda, engolir esse choro e trancar essa cara de cu, sua puta vagabunda, piranha louca. Cala a boca senão te mato. Entendeu bem? Por que continua? Vou te encher de porrada. Se me olhar assim de novo com essa cara de puta, o pau vai comer, sua vagabunda de merda.

Aaaaaai. O que eu faço pra esse cara parar, meu Deus? Não sei mais pensar. Que porra de jeito eu tenho que olhar para ele parar com esse surto? Que merda. O filha da puta, aaaai, vai me acertar. Caralho! O que esse louco tá fazendo? Aaaaaai! Ele tá louco, vai me quebrar. Que é isso?

Não faz o menor sentido isso. Simplesmente não é vida. Não é uma vida digna de ser vivida. Muita gente me falava isso e sempre achei que era papo de quem não entendia nada, de quem estava de fora. Mas agora parece meio bizarro todo esse circo armado por esse cara muito louco. Onde antes eu via amor, amor, amor, um amor desvairado, passional, enlouquecido, agora vejo só doença. Uma doença louca e tenebrosa. Uma chaga doentia que vai entrando assim nos dedos e penetrando as células, as entranhas todas, a alma. É foda entender a verdade dura e crua: ele não me ama, isso não é amor, isso é loucura doentia. Isso é insegurança e possessividade.

E ele era tão lindo. Mas tão lindo. O que aconteceu? Como o príncipe da minha vida virou esse monstro insano? O que me tortura, o que me faz acordar toda noite com o coração batendo é o medo dele cumprir suas ameaças e suas chantagens. Ele me paralisa.

Mas o que mais me apavora, na verdade, é um pensamento devastador, que me dá enjoo e dor de cabeça a cada vez que ele entra na minha mente: como fui cair nessa história? Por que cargas d’água fiquei doze anos com esse cara e tive dois filhos com essa besta? Besta quadrada doentia e louca, macho inseguro e machista de uma égua.

Vai, sua vagabunda, vem, vem aqui de joelho pra mim. Isso, vem e pede perdão. Vem aqui bem pertinho que é pra eu te encher de porrada. Isso. Assim como você merece, sua filha de uma puta. Você que gosta. Que gosta de tudo e de todos, que não obedece. Sua família não te educou? Sua família é do bem, lembra? Não teve mãe que te ensinou? Não jurou obediência? Então cumpre. Jesus Cristo está te vendo. Não jurou fidelidade eterna? Não aprendeu a respeitar teu macho?

Vai embora! Sai daqui. Não quero mais. Não aguento mais. Não. Dessa vez é sério. Não, não e não.

Eu te amo, amor. Me perdoa. Não vou mais te bater, juro. Te amo. É por amor. Você me deixa louco. Você tem um jeito assim de olhar e andar que deixa todo mundo louco por você. É você que me deixa louco.

Sabe alienação parental? Então… Tem também alienação conjugal. Gaslighting. Quantas e quantas vezes ele conseguiu distorcer tudo e me convencer de que a culpa era minha.

Para com isso, sua louca. Larga essa faca. Eu não tô te enforcando não. Não vem com essa conversa de legítima defesa. Vou te denunciar. Você é mesmo uma louca assassina. Tô falando. Uma louca desvairada e que deixa todo mundo louco. Você é infame. E vem agora aí chorando com essa cara de cadela coitada. Para de fazer esse jogo, sua vagabunda. No fundo uma puta. Cara de puta, corpo de puta, alma de puta. Vem, me engana que eu gosto. Toma. Toma sua vaca.

Nossa!!! Como fiquei mais de uma década na lengalenga desse cara? Como ele pôde vir com esse papo aranha pra cima de mim? E o mais louco é o seguinte: como eu caí nessa? Nessa rede meio ridícula que parece grande amor e é só papo bizarro.

Chega disso. Quero sair fora. Quero outra vida. Não aguento mais essa “loucura a dois” disfarçada de grande amor passional. Vai pra puta que te pariu com esse papo de ciúme possessivo desvairado. Não aguento mais essa gosma nojenta. Quero outra coisa, outra vida, outra eu. Enfim, vaza.

Como vou dizer isso para ele? Como vou escapar dessa doideira plena? Estou atônita comigo mesma. Como ele conseguiu me convencer que eu era a louca da história? Que eu não podia viver sem ele, sozinha? Que a minha família tinha vergonha de mim, que eu era uma perdida, desvairada, desencaminhada?. Como mergulhei nesse monte de lama? Não consigo saber até que ponto a religião me ajudou ou me atrapalhou.

O que exatamente aconteceu na minha vida? Essas histórias entram na minha mente e fecundam. Não sei mais quem sou eu. Sei que fui uma mulher sem inteireza desse nome. Uma submulher. E tudo é feito para isso. Desde o primeiro pobre coitado que me assediou em casa até o outro que me estuprou no primeiro emprego. Por que raios eles podem? Por que a violência é tão arraigada e profundamente espalhada em todos os cômodos disso que se chama sociedade? Estou finalmente saindo fora de todo esse lixo. E, surpreendente, estou gostando dessa outra ‘eu mesma’ que está surgindo de algum lugar.

Eu vou matar você e seus filhos, sua piranha de merda. Agora você vai ter o que merece.

Quê? São teus filhos também! Nãaaaaaaaooo.

Que porra é essa? Que cheiro é esse? Uau! Ele tá abrindo o gás. É isso?… Nossa! Não consigo mais. Não tenho mais força. Acho que acabei aqui.

Blecaute.

***

Os meus filhos ele conseguiu matar. Os nossos filhos ele conseguiu matar.

Mas eu não. Não desta vez.

Sobrevivi.

Renasci.

E hoje sei que sou a mão que conduz muitas mulheres para a vida. A vida que nos foi negada desde sempre. E que de alguma forma perversa permitimos que nos seja arrancada dia a dia. Hora a hora, a cada vez que acatamos essas narrativas tortas de que nossos lugares são ao mesmo tempo o da sedução e da submissão.

Escuto a mim mesma, a ele, a todas as outras, a todos os outros.

Todas elas. Todas Marias. Todas Genis.

Repensamos os paradigmas de masculino e feminino. Compreendemos a incomensurável angústia – e, por que não assumir?, insegurança- diante do enigma do desejo do outro.

Trabalhamos por aquela que será uma lenta, lentíssima transição do paradigma da força para o paradigma da linguagem. Somos seres de corpo e força, somos seres de inteligência e fala. Seres de razão, emoção, afeto, pulsão, inconsciente desrazão e fala. Eles saberão algum dia minimamente se escutar. E negociar. Sem ser na bala, na porrada. De outras maneiras, de outros patamares.

A posição será outra.

Violência estará fora de moda. E ficará como marca ancestral, para contar a história de uma humanidade que a duras penas buscou se constituir.

*Maria Lucia Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora nas áreas de Psicanálise, Cinema, Literatura e Comunicação da FAAP

CONTEÚDO!Brasileiros 
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