Brechas na lei e falta de acompanhamento ainda permitem abusos em internações psiquiátricas feitas contra a vontade do paciente no Brasil. O principal imbróglio, segundo especialistas ouvidos pelo Saúde!Brasileiros, é a ausência de uma revisão sobre as circunstâncias e razões da internação e laudo emitido por psiquiatras que nunca viram o paciente. Soma-se a isso o interesse de comunidades terapêuticas que se beneficiam da longa internação. As consequências são reclusões desnecessárias, prolongadas, não efetivas e realizadas, em alguns casos, por motivações escusas de quem as solicita.
O debate veio à tona nesta terça-feira (13) quando o jornal Folha de S.Paulo publicou que o psiquiatra Ronaldo Laranjeiras teria assinado um laudo de internação para um paciente que não atendia desde 2008. O laudo foi feito a pedido da família e a reclusão dá aos parentes o controle sobre o patrimônio do empresário, avaliado em R$ 40 milhões. Laranjeiras é coordenador do “Recomeço”, programa de controle do crack do governo do Estado. A história está sob investigação do Ministério Público e do Conselho Regional de Medicina de SP. À Folha, o psiquiatra disse que já atendia o empresário e o pedido teria sido uma exceção. Procuramos o médico para entrevista, mas não obtivemos retorno.
“Não se dá um laudo sem ver o paciente”, diz Suzana Campos Robortella, psiquiatra há 37 anos que atua no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Ela também foi coordenadora de Saúde Mental de São Bernardo entre 2010 e 2013. “O laudo é emitido sob uma avaliação clínica e é um ato médico, feito na presença dos dois – médico e paciente. O psiquiatra sempre tem de ouvir o paciente”.
A psiquiatra explica que, em geral, a família não está presente durante a avaliação da internação que é feita só em casos extremos, por intoxicação, ou quando o paciente apresenta risco para si ou para terceiros. Seja qual for o motivo, o tempo é limitado, diz ela. A internação também é feita em três momentos: primeiro, o psiquiatra conversa com o paciente; depois, com a família em separado; e, em um terceiro momento, é feita uma mediação.
Suzana, diz que, apesar disso, “há psiquiatras que concedem o laudo sem nunca ter visto o paciente”. Ela afirma ainda que, em muitos casos, o laudo é assinado pela própria clínica que vai se beneficiar financeiramente da reclusão.
“Quando você ouve falar da mercantilização da saúde e da psiquiatria e das suas consequências, é disso o que estamos falando. O próximo passo é a família poder pedir a interdição dessa pessoa, quando ela não vai poder fazer nada, nem movimentar conta em banco.”
Ela explica que, em casos de intoxicação por drogas, o usuário já está livre de qualquer substância em três dias. O processo deve ser feito em hospital geral, com médicos e atendimento qualificado para uma parada cardiorrespiratória – no caso de intoxicação por crack e cocaína, por exemplo. No CAPS, em casos mais graves, a internação pode ocorrer em até 14 dias e é feito todo um processo para a internação. “A gente mostra para o paciente que ele vai ter acesso aos bens dele, que vai poder ter visita de quem ele quiser e a maioria aceita.”
Falta acompanhamento sobre o processo
O entendimento, pelo menos na lei, é de que a internação é um último recurso, feito quando já se esgotaram todas as possibilidades de terapia. O princípio tem por base a lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que ficou conhecida como a reforma psiquiátrica. No entanto, embora a lei tenha retirado o hospital do centro da atenção psiquiátrica e referendado que a internação só pode ser feita em condições extremas e por tempo limitado, ela abre brechas para abusos.
“A lei permite uma modalidade de internação, que é a involuntária. Na prática, ela não passa por nenhum controle externo. A lei é muito enxuta. Isso é um pulo do gato porque as pessoas podem ser vítimas de abuso por familiares”, diz Daniela Skromov, defensora pública em São Paulo que acompanhou de perto casos de internação involuntária.
“Basta o médico assinar um laudo para que essa pessoa seja internada e um familiar requerer a internação.”
Daniela diz que, embora a lei prevê que o Ministério Público acompanhe os casos, muitos acabam sem acompanhamento. O MP também não tem a atribuição de atender casos individuais, nem possui uma equipe médica capaz de fazer essa avaliação. Ela cita ainda uma portaria do Ministério da Saúde (de número 2391/2002) que regulou mais detalhadamente esse acompanhamento – mas, novamente, a medida não é colocada em prática. A portaria estabelece que uma comissão multiprofissional deve avaliar as motivações da internação em até sete dias após a reclusão. Essa comissão deveria ser composta por médico psiquiatra não ligado à instituição de internação, além de outros profissionais.
“Em todo o tempo que eu trabalho com isso, eu nunca vi essa comissão ser instaurada”, diz Daniela. A defensora afirma ainda que já acompanhou casos de pessoas internadas para o controle de bens e até pelo fato da família estar desgastada com o paciente. “Até é compreensível que a família tenha seus motivos para requerer a internação e está desgastada com o familiar, mas isso é um desvio do uso da lei.”
“Eu já encontrei pessoas de posse internadas há anos. Quando começa a ter um controle sobre aquela clínica, a família vai lá e coloca em outra. Se fosse uma prisão, existiria até um controle. Mas essas internações acontecem muitas vezes em áreas rurais e afastadas. A informação sobre a mudança na internação não está em lugar nenhum. Até para quem faz um acompanhamento, você não tem um controle para onde a pessoa foi.”
A defensora diz que dá para defender a ”inconstitucionalidade patente” da prática e que, quanto mais instituições forem envolvidas no processo, melhor. “Deve haver uma porosidade da internação para conter ilegalidades”, defende. Uma das instituições que deveriam ser notificadas dos casos, segundo ela, é a defensoria, que poderia atuar em conjunto com o MP. “Não defendo um único destinatário para o acompanhamento, que deve envolver diversas instituições.”
Um problema histórico de difícil resolução
O problema com a internação compulsória é histórico no Brasil. É conhecido o caso de Tutu Quadros, filha de Jânio Quadros, que foi internada pelo pai após denunciar o sumiço de 2 milhões de dólares do cofre da campanha de seu pai à prefeitura de São Paulo. Em entrevista ao programa Roda Viva, em 1988, ela falou de sua luta contra a internação e dos relatos que recebeu no Brasil inteiro sobre a prática.
“Eu apresentei uma emenda constitucional proibindo internamento psiquiátrico, a não ser com a presença de um curador do Estado e médicos qualificados, porque o que aconteceu comigo foi uma experiência muito interessante. E não aconteceu só comigo. Uma senhora que me procurou foi raptada na Rua Augusta [em São Paulo] por uma clínica, a mando do marido que se apaixonou por uma secretária de 23 anos. Uma jornalista era filha de um militar e se envolveu em política estudantil, então o pai a internou. Eu tive vários casos, enfim, depois do que aconteceu comigo, eu tive quase dez mil telegramas. E aqui no Brasil é uma prática irresponsável e abusada. Quando a pessoa se torna inconveniente, é uma saída.”
Práticas como as descritas por Tutu Quadros deram início a uma luta histórica no Brasil contra a internação compulsória. “Historicamente no Brasil e no mundo as internações foram utilizadas por interesses diversos – seja para ter acesso a bens, seja por variados motivos, inclusive, para o tratamento da homossexualidade. Também a figura da família está no centro”, diz Moacyr Miniussi Bertolino Neto, psicólogo que trabalha na rede pública e membro da Frente Estadual Antimanicomial de São Paulo.
Reedição do manicômio?
Especialistas também alertam para o crescimento das chamadas comunidades terapêuticas – que acreditam ser uma espécie de reedição do manicômio por também permitirem abusos e reclusões prolongadas. “Temos que parar de investir em comunidades que lidam com a permanência dessas pessoas e não com a melhora delas”, diz Moacyr Neto.
A psiquiatra Suzana Robortella também dá um alerta sobre a atuação dessas comunidades. “Há um renascimento dos manicômios, uma reedição. O fato é que a pessoa que está lá não aprende nada. Como é que ela vai lidar com o traficante que ela está devendo? Ou como vai ter a vida dela para poder sair disso? O paciente volta para a casa piorado porque perdeu os laços.”
Também a defensora pública Daniela Skromov chama a atenção para as diversas ilegalidades que ocorrem nesses estabelecimentos, atuantes ao largo de qualquer fiscalização.
“Do jeito que está hoje, eu posso te garantir que tem muita, muita ilegalidade. De tudo. Tempo da internação, de internação indevida, de violações de direitos… Ainda, quem vai dar alta para esse paciente é o próprio médico da clínica, que lucra com isso. E o próprio termo clínica está incorreto porque a maioria desses locais não possui estrutura alguma.”
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