A voz rouca e a postura firme revelavam uma mulher forte. Guerreira desde sempre, a trajetória da socióloga Luiza Helena Bairros garantiu conquistas que ajudaram a construir um País mais justo. No dia a dia da luta e no incansável trabalho, ela expôs o racismo inerente à sociedade brasileira e ajudou a derrubar o mito da democracia racial, que paralisava avanços e justificava – de maneira velada – a exclusão racial. Foi imprescindível nos direitos mulheres negras e a primeira a propor o enfrentamento ao genocídio dos jovens negros, que segue nos acometendo.
Luiza morreu nesta terça-feira, 12 de julho, em Porto Alegre, aos 63 anos. Foi vítima de câncer de pulmão, doença descoberta em março deste ano e sobre a qual não queria falar.
Contundente em suas posições e uma grande liderança, ela devolveu ao povo negro a dignidade de existir no Brasil. Ministra chefe da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) entre 2011 e 2014, no primeiro governo de Dilma Rousseff, Luiza foi também importante nas negociações que implementaram o Estatuto da Igualdade Racial, em 2009, o primeiro grande marco de direitos para a população negra.
Foi igualmente fundamental para a existência das cotas raciais e lutava para que fossem instituídas em todos os níveis, incluindo o Parlamento. “Conheci Luiza há muitos anos, na luta feminista, quando percebemos que o feminismo negro teria que ser pautado diferentemente do feminismo branco. Fizemos uma parceria enorme e avançamos muito juntas”, lembra a ex-ministra de Políticas para Mulheres Eleonora Menicucci. “Ela era imbatível, uma guerreira, o legado que deixa é enorme. A saudade é muito grande. Com toda a sua ética e sua rigidez, sempre pautou sua vida pela justiça, pela liberdade e solidariedade.”
Legado
Luiza Bairros era natural de Porto Alegre (RS), mas amava viver em Salvador (BA). Sempre que podia, corria para a “terra de todos os santos”, onde morava desde 1979, quando conheceu o Movimento Negro Unificado.
Era mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em sociologia pela Michigan State University. Graduou-se em Administração Pública e de Empresas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e se especializou em Planejamento Regional pela Universidade Federal do Ceará.
Entre 2001 e 2003, atuou no programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), na preparação e acompanhamento da histórica III Conferência Mundial Contra o Racismo. De 2003 a 2005, trabalhou na pré-implementação do Programa de Combate ao Racismo Institucional para os Estados de Pernambuco e da Bahia junto ao Ministério do Governo Britânico para o Desenvolvimento Internacional (DFID). De 2005 a 2007, voltou a ser consultora do PNUD, coordenando o programa de combate ao racismo institucional nas prefeituras do Recife e de Salvador. Em 2008, tornou-se secretária de Promoção da Igualdade Racial da Bahia. Deixou o cargo para assumir a Secretaria Especial de Igualdade Racial, que chefiou até 2014.
Militante da causa negra e da democracia
Pautada pela necessidade de tirar as propostas do papel e colocar na prática, tornou realidade o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir). Em sua visão, a importância desse sistema seria inaugurar a possibilidade de envolver todas as esferas do poder em um novo ciclo das políticas de promoção da igualdade racial no Brasil, fortalecendo conselhos, ouvidorias permanentes e fóruns estaduais e municipais.
“Luiza foi uma incansável militante da causa negra e da democracia brasileira”, declarou a presidenta afastada Dilma Rousseff. “Sua obra permanece viva e continua sendo um símbolo da luta contra o preconceito e em favor das melhores causas da vida política nacional.”
Guerreira incansável
A esta repórter, Luiza Bairros concedeu algumas entrevistas memoráveis, a última durante a Marcha das Mulheres Negras, que aconteceu em Brasília, no ano passado. Também trabalhamos juntas em um projeto sobre “Imprensa e Racismo”, da Andi-Comunicação e Direitos, para compreender a cobertura dos grandes veículos de comunicação sobre os temas ligados à questão racial; também tive a honra de atuar com ela em um programa inédito da Fundação Kellogg de enfrentamento ao racismo no Brasil. Era firme em explicar a persistência do preconceito racial. Junto às amigas e companheiras de militância Sueli Carneiro e Vilma Reis, grandes líderes do movimento negro, Luiza me ensinou muito.
Sempre firme e precisa, a cada encontro sua força me chamava a atenção. Por trás da seriedade, havia um coração extremamente generoso. “Luiza inventou um mundo para que todos nós existíssemos com dignidade e cabeça erguida”, recorda Vilma Reis, ouvidora da Defensoria Pública da Bahia. “Ao falar, não perdia uma palavra na precisão e na convicção política de que todos – o povo negro e as mulheres negras – temos direitos nessa sociedade brasileira.”
Na última entrevista que fizemos para o site Jornalistas Livres, Luiza apontou caminhos. “O racismo não está mais protegido pela ideia da existência de uma democracia racial. Portanto, fica agora muito mais evidente que a questão negra não é uma questão específica. Precisa ser tratada no âmbito das grandes questões nacionais”, disse.
Para Luiza, é hora de avançar na ocupação do poder político institucional. “Ou você faz com que essas concepções que o movimento negro construiu ao longo do tempo cheguem nas instituições através das pessoas que têm efetivamente esse tipo de interpretação e análise da sociedade brasileira, ou então você não vai muito mais adiante. Não tem mais como você pensar o país desconsiderando a população negra, que é a maioria da população. Você não estaria fazendo nada, não estaria pensando nada.”
Em Brasília, haverá nesta terça-feira (12) uma homenagem para Luiza a partir das 17h, na Praça Zumbi, no Conic.
O velório começa hoje, às 20h, na capela 9 do Cemitério João XXIII. Na quarta-feira (13), o cortejo segue para a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e o velório acontece a partir das 16h. O enterro será na quinta-feira, 14 de julho, às 15h, no Cemitério João XXIII,em Porto Alegre.
Luiza nos fará muita falta. Mas nos inspira a seguir firmes. Como ela sempre foi.
Salve a força do povo negro!
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