Os tempos atuais são de desafios para os movimentos sociais, em especial para aqueles ligados às demandas feministas e às dos grupos LGBT. A afirmação é válida para o contexto internacional – a era Trump não deixa margem a dúvidas –, mas também para o Brasil, particularmente nesta fase pós-golpe. Em nosso país, um dos ingredientes da onda conservadora recente é o ataque ao que, equivocadamente, se costuma chamar de “ideologia de gênero”.
Este termo faz parte de um discurso usado por líderes políticos e religiosos para desabonar personagens engajados em causas como a defesa do empoderamento feminino e da diversidade sexual. Segundo esse juízo, tais atores estariam supostamente empenhados em inculcar na sociedade valores divergentes dos ditos “normais”, sob certos preceitos religiosos e morais, no âmbito da sexualidade.
Assim, a proposta de se discutir mais amplamente temas que envolvem a sexualidade – como o questionamento da heteronormatividade, o direito das mulheres a decidirem sobre ações que afetam seus corpos, o esclarecimento sobre métodos contraceptivos ou a prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis – é pejorativamente tachada de “ideologia de gênero”.
Tal emprego do termo gênero, no entanto, se distancia em muito do sentido adotado nas reflexões acadêmicas, nas quais, dentre outros aspectos, ele se refere à forma de compreender histórica e culturalmente as relações entre os sexos. Não se trata de uma doutrina, mas, ao contrário, é fruto de um pensamento complexo, sofisticado, e principalmente crítico, o que faz com que se constitua enquanto um domínio do saber com matizes variados e posições divergentes.
Ultimamente, campanhas pelo fim da “ideologia de gênero” se alastraram pelo Brasil e algumas repercussões concretas foram alcançadas. Isso corresponde, em parte, a uma reação de setores conservadores à crescente força dos movimentos sociais ligados às questões de gênero. Estes, de fato, não só se expandiram, como deram ao próprio feminismo um vigor renovado.
Ao longo do século XX, as mulheres lutaram pela igualdade legal e pelo direito ao voto; militaram em partidos, associações, movimentos revolucionários, guerrilheiros e de resistência, o que muitas vezes resultou em prisão e exílio; atuaram na imprensa, consolidando o feminismo e ajudando a ampliar suas pautas. Outros temas que as motivaram foram a busca pela profissionalização em diversos campos e a inserção na vida pública, através de cargos e mandatos nas esferas regional, nacional e internacional.
Hoje, as mesmas pautas ainda são válidas, mas outros componentes são acrescentados ao debate, para o que foram importantes a emergência e a divulgação do conceito de gênero nos anos 1980/90. As reflexões sobre gênero mostraram que a categoria mulher, entendida no sentido estritamente biológico, já não dava conta das diferenças existentes no interior desse grupo. O conceito de gênero colaborou para contemplar mulheres de diferentes clivagens identitárias e refletir sobre as relações sociais e de poder entre elas e também com os homens.
Recentemente, as bandeiras do feminismo se unem às de ativistas e apoiadores de variadas vertentes, como a comunidade LGBT, mas ainda às de representantes da luta antirracismo. Esta problemática desponta como uma prioridade do feminismo na atualidade e é sustentada pela noção de interseccionalidade, isto é, o cruzamento de diferentes situações de exclusão social.
Assim, nas últimas décadas, as lutas das mulheres se ampliaram e se construíram a partir de uma pauta mais diversificada, também social, e em diálogo com grupos com questões variadas dentro do âmbito de gênero, como a homossexualidade, a transexualidade, a travestilidade. As muitas manifestações a que assistimos englobam ações como organização de marchas; formação de coletivos; ocupações; manifestações de rua e pelos meios digitais denunciando preconceitos sexuais e de gênero; mobilizações contra a cultura do estupro até debates visando atualizações léxicas que respondam mais adequadamente às demandas dos grupos envolvidos.
Foram postos em xeque os preconceitos expressos em suas mais diversas facetas: o machismo, a misoginia, a homofobia. Se pudéssemos definir a tonalidade deste período, diríamos que ele foi ricamente estampado com as cores do arco-íris e sombreado com tons de roxo. A onda roxo-colorida pode ser evidenciada em manifestações como a Marcha das Vadias e a Parada do Orgulho LGBT (Parada Gay), para ficar em apenas dois exemplos. Esta última, iniciada em São Paulo em junho de 1997 – há quase 20 anos –, teria batido recorde mundial em 2006 abrigando o maior número de participantes de todas as edições do evento.
No entanto, em paralelo a esse vigor renova – do dos movimentos feminista e LGBT, emergia uma corrente antagônica. Suas pautas não se restringem ao controle do comportamento sexual e das discussões sobre identidade de gênero, mas estes são alguns dos seus mais importantes cavalos de batalha. E a porta de entrada para esse combate tem sido o campo educacional. Referimo-nos ao Escola sem Partido, mas também a políticos e aliados, muitos dos quais religiosos, que, da instância municipal à federal, mostram suas afinidades com este movimento, propondo a exclusão da criticidade dos debates sobre gênero e outros temas nas escolas.
Utilizando-se de slogans e recursos apelativos, têm alcançado êxito em algumas iniciativas ainda localizadas. São exemplos a adoção do programa Escola Livre no Estado de Alagoas, contra uma suposta doutrinação política exercida por professores; a exclusão da palavra gênero no Plano Municipal de Educação de São Paulo – ambas as medidas aprovadas em 2016; e a recente decisão de uma prefeitura de Rondônia de arrancar páginas de livros didáticos que contivessem discussões sobre diversidade sexual.
Projetos de lei semelhantes tramitam, hoje, nas diferentes instâncias do poder público. Tais ações implicam um retrocesso em relação a reivindicações como o combate à cultura do estupro e o enfrentamento das formas de violência contra a mulher e a população LGBT. Não se deve descartar o caráter até certo ponto machista do processo que levou à destituição da presidenta Dilma Rousseff. O próprio golpe foi alicerçado em palavras de ordem que retomavam o ideal feminino voltado ao culto da domesticidade, valorizando o recato da mulher e sua presença no lar e junto à família.
Em meio a essa avalanche conservadora, preconceitos que julgávamos superados voltam, agora, espalhando sombras e fobias. Esses ataques são reações à explosão de movimentos que questionaram padrões e propuseram o fim da intolerância e da discriminação. O feminismo tem um papel primordial no questionamento dos valores e ações que oprimem mulheres e outras minorias. Em tempos tão adversos às conquistas sociais, sua presença se torna, mais do que nunca, imprescindível.
*Stella Maris Scatena Franco é historiadora, docente do Departamento de História da USP
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